A tua avó paga mais impostos que um mega-rico
A minha avó não tem quintas, empresas ou acções. Não é dona, inclusive, da casa que habita há mais de 60 anos. Tem a 3.ª classe, uma vida de trabalho no campo, uma pensão pouco superior à mínima, um conjunto de doenças graves que impedem a sua mobilidade. Diria que tem uma vida em tudo semelhante à de muitas avós de quem lê esta crónica. Outra coisa comum entre todas é que pagam mais impostos do que uma boa parte dos milionários que se conhecem.
Gabriel Zucman, a pedido do G20, coordenou um relatório sobre a taxação de multi-milionários e comprovou algo que só pode ser surpreendente para quem está desatento: a taxação do rendimento no topo da sociedade — nos 0,0001% mais ricos (sim, três zeros depois da vírgula) — diminui de forma clara, levando a que paguem menos impostos do que todos os restantes cidadãos. Falamos de cerca de 3000 pessoas em todo o mundo. Esqueçam qualquer tipo de progressividade, justiça fiscal, solidariedade ou equilíbrio. Inauguramos uma inovação no sistema fiscal no século XXI: taxem os pobres, deixem os mega-ricos em paz.
Na realidade, a regressividade fiscal nos rendimentos começa nos 0,01% mais ricos, valor em que já pagam menos impostos sobre o rendimento do que a maioria da classe média. Isto faz com que a carga fiscal total baixe ao ponto de pagarem menos impostos do que a tua avó. Tal acontece porque os sistemas de taxação clássicos falham em conceber que o rendimento dos mega-ricos não deriva dos salários, mas da sua riqueza. Mas alguém acredita verdadeiramente que Donald Trump ou Jeff Bezos não têm rendimentos suficientes para serem taxados? Mesmo que não reportem rendimentos “convencionais”, continuam a ganhar dividendos económicos pelos lucros das empresas que possuem, pelas acções que têm ou pelo seu poder político, económico e social.
A perniciosidade do sistema fiscal vai ainda mais longe: falando de património e capital, em média, o cidadão comum paga cerca de 1% da sua riqueza em impostos, sendo que a sua maioria é graças a um gigantesco património que detém — O T2 em que habita. Os mega-ricos pagam pouco menos de um quarto disso. Neste momento, se a tua avó vive numa casa que é dela, paga percentualmente quatro vezes mais impostos do que um mega-rico como Jeff Bezos por todo o seu património. E acredita que não falamos de uma singela casa sem isolamento térmico nos confins de Lamego.
A proposta de Zucman para combater isto é simples – instituir uma taxação mínima de 2%, todos os anos, o mais global possível, para estes mega-ricos. A receita fiscal com esta taxação poderia chegar a cerca de 250 mil milhões de euros, o equivalente ao PIB português. Note-se que não falamos de um novo imposto sobre a riqueza, mas sim de um reajuste do sistema fiscal para impedir que haja fuga ou ocultação de rendimento tributável. Trata-se de tornar o sistema verdadeiramente progressivo e justo para impedir a erosão da democracia decorrente dos níveis elevados de desigualdade. Já imaginaste a quantidade de creches, casas, escolas, hospitais e transportes públicos que se poderiam criar se os mega-ricos pagassem mais impostos que a tua avó?
Deveria ser algo consensual, mas a oposição existe. Tipicamente a principal refutação é de que “vão sair do país com o capital”. Aparentemente lógica, mas trata-se de um mito. Segundo um novo estudo no Financial Times (tudo menos um jornal socialista), o risco da perda de capital por aumento da taxação (uma vez mais, neste caso já prevista) é infundado. Segundo Gabriel Zucman, a taxação não só é tecnicamente possível como a sua implementação seria rápida e eficaz. Falta apenas o que falta sempre para a evolução social: vontade política.
Todas as sociedades sentem necessidade de justificar as suas desigualdades. Outrora, a desigualdade sustentava-se numa determinada ordem natural, religiosa, social e sexual. Hoje, a justificação é de ordem moral: diz-se que a desigualdade ocorre porque os indivíduos esforçam-se de forma diferente. E, neste caso, devo admitir que isso é verdade: a minha avó esforça-se menos a fugir aos impostos do que os mega-ricos.