“A Uma Hora Tão Tardia”, de Claire Keegan: a excelência do minimalismo

por Mário Rufino,    2 Maio, 2024
“A Uma Hora Tão Tardia”, de Claire Keegan: a excelência do minimalismo
Pormenor da capa do livro / DR

Jogar na sombra e deixar o mais importante para a dedução do autor. 

Claire Keegan (Wicklow; 1968) não declara tudo. O sentido está muitas vezes nas sombras das palavras. É o leitor que tem de deduzir, seguir as pistas e complementar o sentido.  
A autora sabe e promove a pluralidade de interpretações. Isto requer confiança em quem lê, mas também a consciência de que a riqueza da leitura está aí mesmo.  
Podemos constatar esta dialética em “Pequenas Coisas Como Estas”, “Acolher” e em “A Uma Hora Tão Tardia”, publicados pela Relógio d`Água. 

“A Uma Hora Tão Tardia” (Trad. José Miguel Silva), o mais recente livro da autora irlandesa publicado em Portugal, reúne 3 contos que compreendem 73 páginas de apurada literatura. 
Neste breve livro não há massa gorda. O leitor tem o que precisa (nada a mais, nada a menos) para o usufruir. Não há superficialidade nem condescendência. 

Claire Keegan / DR

As frases são buriladas e têm o perfeito equilíbrio entre o dito e o não dito. 
Há fatores em comum entre os três contos para além de questões estéticas. Em todos perpassa um sentimento de solidão e de possível terror. As personagens sofrem de um desamparo latente, um desamparo reconhecível e familiar. 
Uma promessa desfeita, um jogo meta-literário e o horror marcam as histórias. 
No primeiro conto, que dá o título ao livro, a relação entre duas pessoas está marcada por diferenças aparentemente ténues, quase irrelevantes, mas que virão a marcar o destino de ambas. São essas diferenças que ficam ao critério do leitor, são essas diferenças que terão de ser interpretadas para se saber se foram a pedra de toque de uma promessa que ficou por cumprir. A caracterização das personagens está nessas palavras trocadas, nos pequenos gestos e pormenores quotidianos, herdados tantas vezes da ascendência, e que virá a determinar o destino da relação. 

Capa do livro / DR

No segundo conto, “A Morte Lenta e Dolorosa” é um aviso: Não se metam com um escritor. Serão torturados nas páginas a escrever. 
Claire Keegan entra num jogo metaliterário em que um conto de Tchekhov é lido na casa de Heinrich Boll (residência literária), onde ela está a escrever. Uma misteriosa personagem entra em ação, o que vai desencadear aquilo que nem a casa nem Tchekhov conseguiram: a necessidade de criar (e castigar o personagem). 

O último conto é um hino de como se mantém a tensão do texto, uma tensão que sugere que algo tenebroso está para acontecer. Tem uma abertura digna de ser registada como uma das melhores entradas lidas em narrativas curtas:  “Cada vez que partia em viagem, a mulher, com um casamento feliz, perguntava a si mesma como seria dormir com outro homem. Naquele fim de semana, estava determinada a descobrir.” 

É o pórtico para um conto de terror que faz lembrar Flannery O’Connor. 
Claire Keegan é do melhor que se pode ler. Da Irlanda vem uma grande escritora que, até agora, tem merecido a melhor adjetivação possível. A escritora estabelece uma parceria de confiança com o leitor. É aproveitar. 

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