A valsa de Brel
E ali estava ela, sentada, na mesma cadeira de sempre. Repetia o lugar como se ocupasse a sacristia de um templo. Observava o altar da rua, e os sacramentos das acções humanas que lá decorriam, com olhar crente mas com murmúrio crítico. Fixava-se numa das cenas e murmurava-as em surdina. Não lhe conseguia perceber a reza, mas conseguia perceber-lhe as intenções, eram críticas, imediatas, vivas. Ela parecia conhecer, de cor, comportamento a comportamento, ao mesmo tempo cientista e sacerdotisa, dos que se atravessavam no seu campo de interpretação. Coloquei-a assim no altar da sociologia. Era lá, que nem Virgem Aparecida, estava pronta a ser adorada.
Ela, não sei se estava, mas eu, estava pronto. O meu relógio de pulso marcava sempre as nove e dezasseis, quando ela começava a missa. Sentava-se sem olhar à volta, colocando-se que nem passageira de económica de um qualquer expresso intercidades, à espera que o revisor a interpelasse. Não havia revisor mas havia o empregado de mesa. O jovem brasileiro interpelou-a, já com o pedido do costume. Trazia, num pequeno tabuleiro, um café cheio e um pastel de nata queimado. Queimado não, calcinado, dir-lhe-ia eu, se tivesse coragem de lhe dirigir a palavra. Não desviava o olhar, não respondia ao Brasileiro, apenas olhava, registava, pensava e murmurava comentários.
Ela era a mulher da minha vida e ainda não o sabia. O meu nervoso era ridículo, já tinha passado dos setenta há quase dez anos e ainda assim, sentia-me um adolescente ao vê-la ao longe e sem coragem de tomar a iniciativa. E não tomei, não foi preciso. Tomou Ela a iniciativa de me pedir lume. Há meses que a via ali e, depois do último gole da chávena de café, era pousar no pires e sair na mesma direcção de onde tinha chegado. O meu relógio de pulso apontava as nove e trinta e um. Quinze minutos, era quanto precisava para a homília do pequeno-almoço. O dia da sua iniciativa começou às nove e cinquenta. Hora estranha para Ela ainda ali estar e ainda mais estranha para eu não saber o que fazer. Tem lume? Repetiu. Desculpe?! Se tem lume que me arranje?
Era um homem que nunca tinha sentido vontade de fumar, e fumar cigarros era coisa de ver outros a fazer. Mas tinha sempre comigo um isqueiro. Já o usava às escondidas, quando ainda se usava licença para uso de isqueiros e acendedores. Nunca gostei de fósforos e ter isqueiro fazia-me sentir capaz de enfrentar qualquer momento como aquele. E ali, preparado, não consegui responder. Ela voltou ao lugar dela a murmurar alguma coisa sobre a minha incapacidade auditiva e o Brasileiro já se aproximava do espaço entre nós quando o agarrei pelo braço. Eu-dou-lume-à-senhora. Gaguejei o mínimo possível, para ele me entender, e deve ter entendido porque ainda me piscou o olho, antes de se libertar da minha interrupção.
Deseja-lume? Foi assim que ela me ouviu a primeira vez. E a nossa conversa seguinte foi sobre tudo e sobre nada do que dois septuagenários podem conversar entre si. Há até quem ache que, na nossa idade, a conversa é sobre filhos, netos e os tempos do antigamente. Nenhum de nós tinha interesse nesses temas. Eu por não os ter, e ela por nunca os ter desejado. Éramos só um homem e uma mulher interessados na companhia um do outro. E isso tivemos de sobra. Primeiro, na minha casa e depois na dela – que partilhava com uma sobrinha que tinha a maior colecção de discos do Brel que eu já tinha visto. Mas dos discos já conto, antes disso, falar apenas do delicioso sexo em que os nossos dois corpos nus se envolveram. Despiu-se para mim e disse-me que só tinha uma regra, tudo teria de acontecer sempre a meia luz, que isso da luz no máximo era só para casais jovens ou velhos tarados. Concordei e, pela primeira vez, nós os dois fomos do afecto à pornografia, em apenas minutos.
Dormimos juntos até se fazer noite novamente e a primeira coisa que fiz, quando acordei, foi ir na direcção dos discos do Brel. A casa dela era minimalista, mas mantinha sempre alguns anjos decorativos que dizia protegerem-na dos mau olhados. No quarto, existiam vários que me faziam sentir desconfortável, nem sei bem porquê; mas preferia os bibelots da sala de estar e os discos do Brel. Tinha reparado neles, desde a primeira vez, era um cantor pelo qual tinha uma obsessão natural. Sempre me disseram ser parecido com ele, ele já se tinha ido e eu continuava por cá como uma versão envelhecida do cantor. Ela não era fã, nem de Brel, nem da Chanson Française. Dizia que as canções só lhe traziam más recordações e que para isso me preferia a mim. Como-assim? Reparando que me interrompia encostada à guarnição da porta, Meu querido, a nossa separação é inevitável, e a separação nunca deixa boas recordações, certo? As suas tiradas filosóficas acendiam-me o lume de maneira que voltámos à cama em três tempos. Aproveitámos a ausência da sobrinha, ausente em viagem de estudo, durante dias. Qu’une valse à trois temps, une valse à mille temps parce que j’avais vingt ans. Eu sabia que a letra nem era bem assim, mas era a corruptela das palavras do Brel que me faziam sentir com vinte anos novamente.
Foram dias nesta dança, até ao dia em que, sentado na esplanada, olhava para o meu relógio de pulso, marcava nove e dezasseis e d’Ela nenhum sinal. A valsa do amor era mesmo assim, nunca fazia sentido depois de ter sido vivida. Sobrava-me apenas a Igreja ao ar livre em que, uns após outros, santos, anjos, beatas, padres e crentes todos me pareciam anunciar a aparição da Virgem. O Brasileiro, esse, continuou a servir-me um café cheio com um pastel de nata queimado, sem nunca perguntar nada. Era eu agora o sacerdote da minha própria consciência. Felizmente, tinha decorado as músicas de Brel, que continuavam a passar na minha cabeça, sem interrupções.
E ali estava ela, sentada, na mesma cadeira de sempre. Repetia o lugar como se ocupasse a sacristia de um templo. Observava o altar da rua, e os sacramentos das acções humanas que lá decorriam, com olhar crente mas com murmúrio crítico. Fixava-se numa das cenas e murmurava-as em surdina. Não lhe conseguia perceber a reza, mas conseguia perceber-lhe as intenções, eram críticas, imediatas, vivas. Ela parecia conhecer, de cor, comportamento a comportamento, ao mesmo tempo cientista e sacerdotisa, dos que se atravessavam no seu campo de interpretação. Coloquei-a assim no altar da sociologia. Era lá, que nem Virgem Aparecida, estava pronta a ser adorada.Ela, não sei se estava, mas eu, estava pronto. O meu relógio de pulso marcava sempre as nove e dezasseis, quando ela começava a missa. Sentava-se sem olhar à volta, colocando-se que nem passageira de económica de um qualquer expresso intercidades, à espera que o revisor a interpelasse. Não havia revisor mas havia o empregado de mesa. O jovem brasileiro interpelou-a, já com o pedido do costume. Trazia, num pequeno tabuleiro, um café cheio e um pastel de nata queimado. Queimado não, calcinado, dir-lhe-ia eu, se tivesse coragem de lhe dirigir a palavra. Não desviava o olhar, não respondia ao Brasileiro, apenas olhava, registava, pensava e murmurava comentários.
Ela era a mulher da minha vida e ainda não o sabia. O meu nervoso era ridículo, já tinha passado dos setenta há quase dez anos e ainda assim, sentia-me um adolescente ao vê-la ao longe e sem coragem de tomar a iniciativa. E não tomei, não foi preciso. Tomou Ela a iniciativa de me pedir lume. Há meses que a via ali e, depois do último gole da chávena de café, era pousar no pires e sair na mesma direcção de onde tinha chegado. O meu relógio de pulso apontava as nove e trinta e um. Quinze minutos, era quanto precisava para a homília do pequeno-almoço. O dia da sua iniciativa começou às nove e cinquenta. Hora estranha para Ela ainda ali estar e ainda mais estranha para eu não saber o que fazer. Tem lume? Repetiu. Desculpe?! Se tem lume que me arranje?
Era um homem que nunca tinha sentido vontade de fumar, e fumar cigarros era coisa de ver outros a fazer. Mas tinha sempre comigo um isqueiro. Já o usava às escondidas, quando ainda se usava licença para uso de isqueiros e acendedores. Nunca gostei de fósforos e ter isqueiro fazia-me sentir capaz de enfrentar qualquer momento como aquele. E ali, preparado, não consegui responder. Ela voltou ao lugar dela a murmurar alguma coisa sobre a minha incapacidade auditiva e o Brasileiro já se aproximava do espaço entre nós quando o agarrei pelo braço. Eu-dou-lume-à-senhora. Gaguejei o mínimo possível, para ele me entender, e deve ter entendido porque ainda me piscou o olho, antes de se libertar da minha interrupção.
Deseja-lume? Foi assim que ela me ouviu a primeira vez. E a nossa conversa seguinte foi sobre tudo e sobre nada do que dois septuagenários podem conversar entre si. Há até quem ache que, na nossa idade, a conversa é sobre filhos, netos e os tempos do antigamente. Nenhum de nós tinha interesse nesses temas. Eu por não os ter, e ela por nunca os ter desejado. Éramos só um homem e uma mulher interessados na companhia um do outro. E isso tivemos de sobra. Primeiro, na minha casa e depois na dela – que partilhava com uma sobrinha que tinha a maior colecção de discos do Brel que eu já tinha visto. Mas dos discos já conto, antes disso, falar apenas do delicioso sexo em que os nossos dois corpos nus se envolveram. Despiu-se para mim e disse-me que só tinha uma regra, tudo teria de acontecer sempre a meia luz, que isso da luz no máximo era só para casais jovens ou velhos tarados. Concordei e, pela primeira vez, nós os dois fomos do afecto à pornografia, em apenas minutos.
Dormimos juntos até se fazer noite novamente e a primeira coisa que fiz, quando acordei, foi ir na direcção dos discos do Brel. A casa dela era minimalista, mas mantinha sempre alguns anjos decorativos que dizia protegerem-na dos mau olhados. No quarto, existiam vários que me faziam sentir desconfortável, nem sei bem porquê; mas preferia os bibelots da sala de estar e os discos do Brel. Tinha reparado neles, desde a primeira vez, era um cantor pelo qual tinha uma obsessão natural. Sempre me disseram ser parecido com ele, ele já se tinha ido e eu continuava por cá como uma versão envelhecida do cantor. Ela não era fã, nem de Brel, nem da Chanson Française. Dizia que as canções só lhe traziam más recordações e que para isso me preferia a mim. Como-assim? Reparando que me interrompia encostada à guarnição da porta, Meu querido, a nossa separação é inevitável, e a separação nunca deixa boas recordações, certo? As suas tiradas filosóficas acendiam-me o lume de maneira que voltámos à cama em três tempos. Aproveitámos a ausência da sobrinha, ausente em viagem de estudo, durante dias. Qu’une valse à trois temps, une valse à mille temps parce que j’avais vingt ans. Eu sabia que a letra nem era bem assim, mas era a corruptela das palavras do Brel que me faziam sentir com vinte anos novamente.
Foram dias nesta dança, até ao dia em que, sentado na esplanada, olhava para o meu relógio de pulso, marcava nove e dezasseis e d’Ela nenhum sinal. A valsa do amor era mesmo assim, nunca fazia sentido depois de ter sido vivida. Sobrava-me apenas a Igreja ao ar livre em que, uns após outros, santos, anjos, beatas, padres e crentes todos me pareciam anunciar a aparição da Virgem. O Brasileiro, esse, continuou a servir-me um café cheio com um pastel de nata queimado, sem nunca perguntar nada. Era eu agora o sacerdote da minha própria consciência. Felizmente, tinha decorado as músicas de Brel, que continuavam a passar na minha cabeça, sem interrupções.