A vergonha tem de mudar de lado
“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
Querida Chéu,
Que bom ter-te encontrado no Teatro Carlos Alberto, no Porto, na récita do espectáculo “Homens hediondos”, e que curioso ter sido na régie.
Pessoas como nós encontram-se sempre nos bastidores, claro. Onde tudo acontece enquanto só se revela o que se quer no palco.
Onde se escondem as dores, as dificuldades, as dúvidas. Onde se cuidam e se saram as feridas que se fazem nos ensaios. Onde se reconhecem pares e se tecem cumplicidades enquanto nos seus corredores, por vezes, se costuram planos, organizam-se golpes ou se decidem trajectórias para manter o status quo limpinho, a brilhar, num pedestal.
Queria escrever-te porque te queria dizer que não foram precisas muitas palavras trocadas naquele fim de espectáculo para perceber o que nos une para além da escrita e para além do facto de sermos mulheres.
Une-nos um silêncio maior do que nós. Um silêncio introduzido nas nossas vidas por defeito, mesmo quando achamos que podemos e sabemos conduzir as narrativas que dão sentido às nossas vidas. E é sobre esse silêncio que gostaria de me corresponder contigo. Porque me sinto correspondida. Na tua escrita, nas tuas questões, nas minhas incertezas.
Não me chega saber (poder?) escrever. Não me chega ler ou saber ler. Não me chega ter voz, nem continuar os dias a carregar o que descubro e o que me faz falta como se fosse uma estola que me adorna mas não altera a composição: nem do meu corpo nem das comunidades a que pertenço.
Assisto às polémicas do ano com um misto de pavor e de impotência. O que escolhemos para denunciar?
Focamo-nos na espuma dos dias, ignorando que as correntes profundas aquecem e envenenam os oceanos.
Porque deixamos tanto por dizer?
Porque não conseguimos dizer mais?
Por medo? Incredulidade? Incapacidade de nos vermos implicadas? Por vergonha?
Assalta-me a ideia de contribuir para uma sociedade que promove com as suas acções exactamente o contrário do que defende.
Suspeito que os instrumentos que tanto exibo para denunciar, raciocinar e reivindicar um espaço de reparação, construção ou mudança, sejam os mesmos que distorcem qualquer reflexo num espelho:
Eu drogo a minha esposa e convido homens para a violarem na nossa própria casa e é ela que deve esconder o seu nome para que não venha a público!
Eu uso o poder do meu cargo académico para trancar alunas no meu escritório e são elas que devem temer o ridículo por terem um dia achado que eu, seu professor, acreditava nos seus dotes intelectuais.
Eu violo, eu seduzo, eu assedio estudantes numa faculdade e um processo é instaurado contra quem me denuncia.
Eu espanco, eu cuspo, eu insulto e é ele que tem vergonha da sua homossexualidade.
Eu ameaço publicar fotografias e filmes pornográficos da minha amante e é ela que me paga e aceita a chantagem.
Eu gravo e partilho as minhas conquistas sexuais com jovens alunas de arquitectura sem o seu consentimento, e se elas reclamam eu respondo-lhes: estudasses!
O que se passa connosco, Chéu?
Como chegámos aqui, a um lugar que só se mantém equilibrado e de pé se humilhar quem é livre?