A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
Querida Patrícia,
As tuas palavras afiadas aguçaram o meu apetite por sangue de menstruação. Uma ideia que pode ser demasiado gráfica, mas a verdade é que ainda há muito sangue de menstruação por correr no que diz respeito à mulher e ao trabalho. Muitos ciclos menstruais colectivos até que se faça justiça, a desejada equidade. Identifico bem as situações de ordem laboral que descreves, também já me senti diminuída, desrespeitada, em ambientes profissionais quando ocupo um lugar de direcção. Na encenação, por exemplo. Pedires algo a uma equipa de técnicos exclusivamente masculina e sentires a falta de vontade para realizar os teus pedidos ou, pior, afirmarem que não seria de todo possível. E veres depois o mesmo desejo cénico ser concretizado apenas porque o pedido foi reiterado por alguém da tua equipa, porém do género masculino. São coisas que podem fazer apenas comichão ou dar azo a um conflito aberto, normalmente optamos por nos coçar discretamente, não vão contrapor com o argumento de que a origem do prurido é claramente psicossomática.
Estou num hotel em Viseu. Por motivos profissionais, estou aqui há quase uma semana, longe da minha filha e da minha casa. Gosto muito de trabalhar, há quem diga que sou viciada, mas sinto falta de estar mais tempo com os meus, de viver sem esta ansiedade profissional constante que as nossas actividades intermitentes nos provocam. Soube há bocado no Dia da Mulher, 8 de Março, vai haver um desfile comemorativo da efeméride aqui em Viseu. A concentração está marcada para as 14h. No comunicado pode ler-se, «Assumimos a urgência da luta por uma política que concretize a igualdade e a emancipação, e apelamos a todas que, na sua diversidade de pensamento, ação e intervenção, se unam em torno da defesa dos direitos das mulheres, da sua integridade, da sua mobilização e participação em igualdade». E destaca ainda a «memória histórica das mulheres na resistência antifascista, a luta libertadora e emancipadora das mulheres e a nossa solidariedade com todas as mulheres que, em Portugal e no mundo, lutam pelos seus direitos, pela soberania dos povos, contra as guerras e pela Paz». Fiquei com pena de já não estar por Viseu no dia 8, mas satisfeita por saber que, cada vez mais, este tipo de acções acontece um pouco por todo o país. Estamos a dias das comemorações do Dia Internacional da Mulher e eu sinto que devíamos ter não um, mas dois dias de comemoração, ou que deveria ser feriado mundial. Não estou a brincar. Penso no nosso cansaço, um cansaço ancestral que as mulheres trazem às costas e no ventre, e nas nossas mãos e corações e inteligência feridos por séculos de humilhações. Quanto mais envelheço, mais amo e respeito as mulheres. As mães, as filhas, as avós, as emigrantes, as imigrantes, as racializadas, as refugiadas, as fufas e as hetero, as boas e as más, as presidentes e as putas (podem ser a mesma pessoa, claro), as drogadas, as bêbadas, as perdidas e as iluminadas, todas as mulheres, sem excepção; respeito o que é ser mulher, profundamente. Há uns anos, surgiu-me um verso — Ser mulher está ainda por inventar.
Acredito nisto como acreditaram outras mulheres antes de nós, muito mais brilhantes do que eu, penso na Joana D’Arc, na Woolf, na Beauvoir, na Wittig, na Chanel, na Khalo, na Butler, e até na Jane Austen e na Madonna, são tantas. E penso em nós, sem nos querer comparar. Mas também penso em Portela e em Chéu como duas guerreiras de caneta em punho. Vamos fazer o que conseguirmos. Sobretudo neste revival Idade Média que se anuncia. Não tarda, voltamos à era das fogueiras e acredita que eu e tu seríamos feitas em lenha enquanto um ditador esfrega o olho. Ainda assim, prefiro «dar o meu diabo à alma», como escreveu a Pizarnik.
Há uns dias tomei conhecimento de um caso de abusos feitos por um cirurgião francês que me chocou imenso. Deves tê-lo visto também. Um médico que abusou de 250 menores durante 30 anos, estando estes num período de pré- ou pós-anestesia. Fiquei agoniada. Um homem adulto que fez juramento de Hipócrates. «Juro solenemente consagrar a minha vida ao serviço da Humanidade. Darei aos meus Mestres o respeito e o reconhecimento que lhes são devidos. Exercerei a minha arte com consciência e dignidade. A Saúde do meu Doente será a minha primeira preocupação.» Que nojo absoluto por um monstro destes. Este homem é tido actualmente como o maior pedófilo da história. Há que dizer o nome dele muitas vezes, mas ainda mais os das vítimas que são quem não podemos esquecer. Dizer alto e para toda a gente — a vergonha tem de mudar de lado. O que é a vergonha senão o ultraje transformado em culpa? Como sabemos, quem devia sentir vergonha e culpa raramente as sente.