A vergonha tem de mudar de lado

por Patrícia Portela,    11 Março, 2025
A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte. 

Querida Chéu,

Consideravas na tua carta se a vergonha não seria o próprio ultraje transformado em culpa. A vergonha pode sentir-se perante algo desconfortável mas potencialmente agradável (eu tenho vergonha de estar ao pé desta ou daquela pessoa porque a admiro, eu tenho vergonha porque sou tímida ou insegura), pode sentir-se perante algo que nos embaraça porque não dominamos, não sabemos fazer ou desconhecemos por completo o seu protocolo (ser apanhada nas aulas desatenta e ter de responder a uma pergunta sobre uma matéria que acabou de ser apresentada na sala de aula mas não ouvimos, participar num encontro onde todos sabem andar de bicicleta menos tu, presenciar uma cerimónia em que todos parecem saber o que fazer menos tu) ou pode ser um gigante desconforto e um intenso sentimento de desespero perante uma situação que gostaríamos que não tivesse acontecido ou não acontecesse regularmente (ser gozada na escola ou no trabalho por bullies, ser maltratada pelo marido, ser violada por um estranho, ser humilhada pelo patrão no trabalho). Todas estas formas de vergonha são muito diferentes, implicam graus variáveis de desconforto – mais ou menos intoleráveis – e nem todas deveriam mudar de lado, apesar do exercício de as ver com a cabeça ao contrário poder ajudar a modelar um novo comportamento perante a fragilidade, a incerteza, a falha, o trauma. Por exemplo: num encontro onde és a única que não se sente à vontade, é responsabilidade dos demais garantir que tal desconforto não existe; num encontro em que todos sabem andar de bicicleta menos uma pessoa, talvez fosse mais útil os ciclistas experientes sentirem como uma prioridade ensinarem-na antes de iniciarem a sua viagem – ao invés de o deixarem para trás “na corrida”. Numa situação de maus tratos, violação, humilhação ou desrespeito, seria louvável se o criminoso, o agressor, o violador, se apercebessem de imediato quem deve sentir culpa e remorso. No entanto não existem apenas dois lados da vergonha. Existem ainda uma terceiro e misterioso lado da vergonha onde reside a vergonha alheia. Esta vergonha, que temos pelos outros é um estranho sentimento que por um lado é suficientemente desagradável para sentirmos que algo está de errado, mas igualmente distante para que sintamos que não temos de fazer nada em relação à situação a não ser manter a devida distância e não se ver envolvido na trama em causa. Este é o tipo de vergonha que tem um cidadão em relação aos governantes do seu país (ou da sua “comunidade unida”), um amigo em relação a outro que não se sabe comportar apesar dos avisos e conselhos prévios de quem se preocupa com ele. Mas também pode ser exactamente o tipo de sentimento que temos quando vemos ilibado alguém que, apesar de não podermos provar, sabemos ser possível ser responsável pelos crimes de que é acusado. Conto isto porque esta semana que passou, vários casos de assédio entre os quais o de um professor de música foram arquivados por “falta de provas”. Uma amiga, que recebeu essa notícia enquanto estava num festival fora do país, contou-me que na mesa onde jantava com mais artistas convidadas, de diferentes gerações e partes do país, rapidamente chegaram à conclusão que todas, sim, Chéu TODAS tinham recebido mensagens impróprias desse mesmo professor, reagindo com mais ou menos empenho às mesmas. Todas! O mesmo me aconteceu há um ano, à mesa de uma sala de ensaios, ao receber a notícia sobre um actor acusado de violação que eu não conhecia e que, num espaço de uma hora, percebi que todos os presentes tinham uma história (consigo ou com alguém que conheciam) que não abonava muito a favor do moço em questão. Ora, poderíamos dizer que nenhuma das histórias contada era devidamente escandalosa ao ponto de ser criminosa mas na verdade todas as histórias eram inaceitáveis, infelizmente nós é que já temos um barómetro para a vergonha que já só aquece com casos imperdoáveis e obscenos, aceitando tudo o resto que se vai passando pelo caminho. Não deveríamos ter um bocadinho de vergonha de fecharmos os olhos tantas vezes a comportamentos que não consideramos acertados e, no entanto, não condenamos abertamente?

Esta semana, curiosamente a propósito do dia da mulher, participei numa tertúlia onde dois homens com idade para terem juízo se pegaram de forma excessiva e inesperada por questões (aparentemente) literárias. O momento foi breve mas desconfortável e surpreendente para todos, e a reacção na sala, eu incluída, foi um misto de tentativa de ignorar o sucedido, continuar a conversa animando os presentes como se nada tivesse passado, e fazer de conta de que tudo tinha muita graça e era a brincar. Todos os participantes, cada um à sua maneira, contribuíram para melhorar o ambiente na sala e repor, quase de imediato o afável tom da conversa. Todos não! Todos menos os dois homens que agora, visivelmente embiucados consigo próprios mas incapazes de o admitir, continuavam a fazer cara feia um para o outro e a considerar a troca de galhardetes um motivo para desafiar o parceiro para um duelo.  A sessão acabou com um inevitável, sabes como é, os homens desta geração são assim, temos de os compreender, estão a passar por uma fase difícil. Vim para casa derrotada, confesso, e a pensar em todos os homens de que tive medo. Todas as conversas em que acabei por não dizer o que sentia, não fosse a pessoa explodir a qualquer momento. Todas as vezes em que sorri para disfarçar o desespero que sentia perante um rosnanço a meio de um jantar. Todas as estratégias que arranjei para agradar a um parceiro ou colega ou vizinho ou amigo maldisposto, por medo de dizer a palavra errada que os irritasse até ao descontrolo. Quantas vezes não ouvi uma outra amiga minha contava-me que em dias de jogo, se o Benfica perdesse, a sua avó vinha para casa mais tarde para evitar um enxerto de pancada. Posso ter tido muito má sorte ao longo da vida e ter encontrado demasiados homens com mau feitio e com uma incapacidade inexplicável para controlarem a sua fúria, mas algo me diz que esta é uma situação demasiado comum (e bastante mais grave para muitas mulheres que se veem condenadas a aceitar comportamentos inenarráveis). E nós, querida Chéu, estamos todas implicadas, Sempre, em cada uma destas situações, como testemunhas ou participantes, e nem sempre estamos à altura da vergonha que, apesar de sentirmos, não é poderosa o suficiente para nos fazer reagir à medida da sociedade em que acreditamos, optando nós, tantas vezes, por comparar o incomparável, desculpando todas as atrocidades em nome de umas maiores sobre as quais ouvimos falar e estamos largamente informadas. Apesar de preferir estar do lado de quem põe água na fervura e tenta compreender quão difícil pode ser para alguns, em determinadas circunstâncias, controlarem a sua frustração e raiva, por vezes pergunto-me se não será por nunca fervermos a água que mantemos o ar contaminado com estas micro-agressões, permitindo que comportamentos que abertamente nunca defenderíamos se mantenham presentes com regularidade no nosso quotidiano, sobretudo quando não nos afectam directamente. A vergonha é de facto um sentimento quase tão inútil como a culpa (esta tua frase, durante as Correntes D’escritas – a culpa é inútil em qualquer ocasião – ficou-me na memória), pois se por um lado silencia quem mais necessita de ajuda, também compromete aquela que testemunha e prefere não ter nada a ver com o assunto. Haverá alguma situação em que a vergonha seja de facto um trampolim para uma mudança benéfica? Ou pedimos nós que a vergonha mude de lado simplesmente em nome de uma consciência crítica de todos os cidadãos, mas nunca acreditando que poderemos todos ser diferentes?

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