A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
Querida Chéu,
Levantas um véu sobre um tema que me é querido e contra o qual luto diariamente: dizes: “todos os meus pesadelos são com pessoas”; “Há algum sítio onde me possa sentir segura?”; “eu tenho medo dos homens, e tu?”; “Eu julgo que seria capaz de matar alguém que violentasse a minha filha,”. Há uns dias, uma amiga minha confessava que se pudesse, fazia voodoo com uma colega de trabalho que lhe transformou a vida num inferno de uma forma inenarrável. Acredita-me, a história é escabrosa, mas ainda assim, custou-me muito ouvir esta minha amiga, sempre pronta a compreender o outro, a encontrar soluções ou a oferecer o benefício da dúvida, a vibrar com a ideia de lhe poder fazer mal.
Há uns anos, poucos meses antes da COVID-19, uma artista irlandesa apresentou um espectáculo no MONTY, catedral da performance alternativa em Antuérpia, onde convidava 9 espectadores a lutar com ela durante quatro minutos. A luta terminaria quando uma pessoa imobilizasse a outra ou quando terminasse o prazo máximo de cada round. Quando ela apresenta as regras do jogo, todos se riem. Gera-se algum burburinho e algum incómodo, mas em aparecendo o primeiro voluntário, os restantes 8 lutam para ser o próximo. Uma das lutadoras (e uma das primeiras) era uma amiga minha a quem perguntei no final do espectáculo: por que decidiste participar? Ela respondeu-me: adorei, quando é que eu vou ter outra oportunidade de bater em alguém e como me apetecer? Achei sinistro.
Eu sempre tive alguma dificuldade em lidar com a afirmação de Sartre “o inferno são os outros” ou de compreender uma lógica de dente por dente, olho por olho ou ainda de acreditar que dar um enxerto de porrada a alguém nos faça sentir melhor na nossa vidinha como ela é. Por muito injusto que nos pareça o mundo, responder-lhe com vingança, violência desmedida ou com um crime parece-me uma espécie de derrota e um passo contra a mudança. Mas é de facto cada vez mais comum ficar estupefacta frente à televisão sem saber o que dizer ou pensar perante a lista de barbaridades que continuamos a executar e a perpetuar impunemente. Uns dias atrás foi um deles.
No mesmo telejornal, e sem uma pausa para respirar, as notícias de violência contra as mulheres sucediam-se:
– O caso da violação da jovem de 16 anos através da lente de uma nova investigação realizada por um dos canais de televisão nacionais: um dos suspeitos de violação ainda não detido gabava-se numa entrevista para o tiktok de um influencer que “ela tinha saído dali sem conseguir andar pelas suas próprias pernas”;
– O caso, pelos vistos generalizado nas universidades, de upskirting, ou seja, filmagens, captação e partilha de fotografias por baixo das saias ou por cima do decote da camisola;
– Uma nova denúncia de abuso sexual de PDiddy, com a conivência de ilustres e célebres mulheres;
– Novas queixas sexuais de uma outra celebridade estrangeira que acumula assim, dezenas de queixas de anteriores companheiras; Um pequeno desvio (que afinal não foi um desvio), para se mostrar o desagrado vice-presidente norte-americano JD Vance com a condenação de Marie Le Pen para logo a seguir ouvirmos Carlos Corte, da Ordem dos Médicos afirmar ser contra a aprovação da lei da violência obstétrica recentemente aprovada, por que se “intromete na autonomia da decisão clinica” e há certos procedimentos que são naturalmente agressivos (penso que a palavra foi mesmo “agressivos”) durante um parto e que podem ser mal-interpretados, abrindo a possibilidade de perseguição de profissionais da saúde que, de acordo com o bastonário, não merecem. Ora, o que a lei prevê, pareceu-me, é uma maior informação desses mesmos procedimentos para além de ser uma reacção a recentes estatísticas que provam que, em 2024, o uso de um corte vaginal em mulheres em trabalho de parto, recomendado apenas para situações extremas, em Portugal foi de 70% quando no resto da Europa é de 20% e a OMS sugere que se utilize apenas em 10% das mulheres.
Logo de seguida faço zapping e apanho o Boaventura Sousa Santos a dizer durante uma grande entrevista na CNN Portugal que “uma mulher que sofreu um trauma não fala”, fica caladinha, não é como essas aí que não se calam! Ou a fazer comentários como: “disparate, dizem que sou mulherengo, no meu tempo dizia-se sorte com as mulheres, o que até é verdade”!
Imagina que nos revoltávamos contra todos estes brutamontes? Só estes, mencionados num único telejornal ou com direito a tempo de antena alargado num programa de debate? Imagina que em vez de lutarmos por igualdade e contra a eterna discriminação, exigíamos vingança, justiça imediata pelas nossas mãos e acertos de contas com estes biltres? Já imaginaste o que seria? Regresso ao nosso tema. Deveríamos desejar que todos tivessem vergonha na cara. Que alguém que estas pessoas respeitam (e será que respeitam alguém?) lhes fizesse um desenho e lhes explicasse o absurdo dos seus gestos, das suas afirmações, do seu olhar fajuto sobre as mulheres. E se começássemos a fazer um manifesto pela vergonha?