A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
Manifesto e re-manifesto a minha repugnância por todos os que, empoleirados em palanques de papagaios escanifobéticos sem risco de extinção, usam a voz apenas para fazer ouvir o seu papaguear aberrante e encerrar a beleza de uma ária.
Manifesto e re-manifesto o meu horror por promessas vãs de cessar-fogo, o meu nojo por posições higiénicas e hipotéticas, tomadas à mesa enquanto se bebem garrafas de vinho que valem um ordenado mínimo, o meu asco por tanta conversa e tão pouca feitura, a minha náusea por um tempo que parece ter roído a honestidade até ao osso.
Expresso e re-expresso a minha vontade de contribuir com algo inútil para a cantiga do ódio e com qualquer coisa de profícuo para uma rede de intelligentzia e afeição. Expresso e re-expresso a minha compaixão por todas as crianças pobres aprisionadas aos telemóveis, enquanto as privilegiadas são poupadas aos malefícios da tecnologia em colégios de luxo, a minha indignação por quem quer acentuar mais a disparidade nas condições de aprendizagem.
Expresso e re-expresso a minha solidariedade por aqueles que apanharam pancada no Rossio no passado dia 25 de Abril, apenas por estarem a comemorar um dos dias mais bonitos e importantes do nosso país. Expresso e re-expresso que temos nos bater por essa palavra tão cara chamada liberdade, que a qualquer momento nos pode ser roubada por ideais tenebrosos como dedos imundos.
A mais fina força dos músculos não serve para impedir as nossas canetas; que construamos neologismos com teclados de orgulho e que re-expressemos a ausência de concordância diante de políticas com mais urros do que vozes humanas.
Expresso e re-expresso que, ao contrário de ti, valente Patrícia, não sei que regras criar, mas sei que regras não devemos continuar a cumprir, como a submissão a situações abjectas privadas ou públicas. Expresso e re-expresso o desejo pela desobediência terna que garanta a existência digna de todos.
Re-manifesto e re-expresso, digo-o dupla e redobradamente porque não basta plantar uma árvore para afirmarmos uma floresta, mas basta um passo para começarmos a caminhada. Re-manifesto e re-expresso a minha fé nas pessoas — eu que fui uma adolescente misantropa e, entretanto, tento crescer por fora e por dentro —, a minha convicção de que a arte é a única divindade que conhecemos, e o meu deslumbramento pelas arestas raras da bondade.
RE-MANIFESTO, RE-EXPRESSO o desejo de sermos incómodas e que o façamos com alegria para que a vergonha possa mudar de lado, sem ter vergonha de atravessar a fronteira do medo, da humilhação e da culpa.
E re-manifesto baixinho ou calo coisas que só à intimidade dizem respeito, re-expresso o regresso à privacidade quase extinta, longe das sobrestimadas vidas públicas. Um elogio ao tédio, ao vício do ócio, que quase moribundo anda à apneia da sobreocupação. Façamos da pausa o momento, do silêncio o estrondo de olhar para dentro.
Quão longe pode ir o pensamento?