A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
Querida Chéu,
Perguntas-me quão longe pode ir o pensamento e eu respondo-te, por impulso, que pode ir muito longe, mas que tal não nos adianta muito se o que pensamos se distanciar tanto do chão que pisamos que não tem qualquer impacto em nada de palpável na nossa vida. O pensamento sem os dias pode ser epifânico mas nunca passará de uma “proposta higiénica e hipotética”. E porque este combate à hipótese higiénica de um discurso (político, filosófico, artístico, educativo) me tocou particularmente na tua última carta, vou tentar explicar o que quero dizer com isto:
Esta foi uma semana comprida e cheia de interrogações que começou com as comemorações do 25 de abril – simultaneamente em Lisboa e em Braga – e terminou ontem, 4 de maio, com a última apresentação de Homens Hediondos, uma produção do TNSJ em Lisboa, no Teatro Variedades. Nesta semana apresentei dois espectáculos diametralmente opostos que criei em 2024 e descobri no desconforto uma máquina de fitness para exercitar o pensamento e reencaminhar a vergonha para o lado certo da barricada.
No dia 25 de abril, enquanto apresentávamos o Mercado das Madrugadas, manual para revoluções futuras, em Braga, inserido no programa da Capital Nacional de Cultura 25, confrontos entre o grupo de extrema-direita 1143 e jovens que celebravam o 25 de abril no Largo de São Domingos (lugar onde estreamos em Lisboa o Mercado das Madrugadas em 2024) terminavam com dois detidos – o neonazi Mário Machado e o ex-juiz negacionista Rui Fonseca e Castro, presidente do partido Ergue-te, e alguns feridos. Enquanto uns gritavam Salazar, Salazar, outros respondiam “25 de abril sempre, fascismo nunca mais” em Lisboa; enquanto a minha filha de 16 anos cantava a Grândola no Rossio, ali ao lado, pela primeira vez sem a companhia da mãe mas na companhia de amigas e amigos, espectadores, coristas do coro corisco de Aveiro e actores abraçavam-se e gritavam no Campo das Vinhas em Braga “ACABOUUU!” reencenando, com especial emoção nesse dia, o dia 25 de abril de João Grosso, actor no Mercado das Madrugadas e na altura da revolução um sonhador e activista de 15 anos.
No dia seguinte, já em Lisboa, dia 26 de abril de 2025, dia que me passarei a relembrar todos os anos como o dia em que deveremos fazer contas ao que fizemos no ano anterior pela liberdade, e rodeada de cúmplices madrugadores, lancei no Coliseu dos Recreios o livro da peça Mercado das Madrugadas ao lado de Pedro Penim que lançou o seu Quis Saber Quem Sou. Numa conversa inspiradora na companhia de amigos e leitores curiosos, partilhamos histórias de várias gerações em relação ao 25 de abril, incluindo a descrição de um dos momentos mais bonitos do espectáculo protagonizado por Fred Botta, pessoa queer não binária que constrói, com um novelo de trapilho vermelho e a ajuda de espectadores, um file rouge colectivo enquanto nos conta o que é um escaramocho (uma quimera metade escaravelho, metade mocho, metade homem, metade mulher, metade corajosa, metade resignado).
Terminada a sessão com os devidos autógrafos e parabéns, partimos para jantar, seguindo depois cada um o seu caminho. Nem duas horas se tinham passado e a pouquíssimos quilómetros do lugar onde celebráramos, felizes, a liberdade, o impensável acontecia no Bairro Alto. Um grupo de rapazes jovens, brancos, e declaradamente de extrema-direita e apoiantes do Chega gritavam DEVIAS MORRER! DEVIAS SER ATROPELADA! TU NÃO ÉS MULHER! à simples passagem de Fred na rua e atiravam cerveja à cara de Beatriz Teodósio (também actriz no Mercado) quando esta intercedeu em sua defesa. Cercando-as e ameaçando-as com linguagem e gestos agressivos, o grupo de jovens parecia sentir-se impune perante o olhar passivo de várias testemunhas. Aquela que se tinha iniciado como uma noite de redobrada celebração, acabava com um sentimento de profunda insegurança e medo fora do nosso lugar de conforto, fora do circuito fechado em que exercemos os nossos ideais, os nossos princípios e, helás, o nosso pensamento. Este acontecimento incomodou-me para lá do apagão de segunda-feira (sobre o qual também teria muito a dizer) e manteve-se presente nos meus dias. Falamos tanto, fazemos tanto, discutimos tanto e basta desviarmo-nos dois milímetros do nosso caminho e a realidade dá-nos logo uma bofetada tirando-nos o tapete debaixo dos pés, tapete esse que teimamos em achar mágico e voador.
A semana terminou com Homens Hediondos, uma peça a partir de textos de David Foster Wallace que criei com Nuno Cardoso, na altura director do Teatro Nacional de São João, e que fala de, como o título indica, de Homens Hediondos. Mais do que no Porto, aqui senti o desconforto de mostrar esta peça. A plateia todos os dias tinha um ou dois amigos – que por certo reconheceriam algumas partes do texto – uma ou duas pessoas que muito admiro e o monólogo de Nuno Cardoso é um enchurrilho de barbaridades que, mais uma vez, tendemos a achar – porque protegidos no nosso casulo eternamente cor-de-rosa – que pertencem a um tempo distante. Um fenómeno curioso aconteceu. O espectáculo, como todos os espectáculos, foi crescendo ao longo das récitas. E se no primeiro dia, algumas pessoas próximas, homens, reclamaram que a personagem era um pouco caricatural, um pouco exagerada (“um homem, na vida real não se comporta assim mesmo quando é hediondo, Patrícia”) e as mulheres, sorriram e agradeceram, repetindo uma das mais célebres frases do texto: eu já encontrei um espécime destes duas ou três vezes na vida!, nos outros dias, um fenómeno mais curioso elucidou-me sobre o lugar do pensamento e o que deve provocar: Nos restantes dias de espectáculo, fui surpreendia pelos muitos sorrisos de “Homens Decentes”, que, como os olhos a brilhar, saíam da sala fazendo uma vénia à régie (lugar onde sempre fico se não entro no espectáculo). Como quem diz: finalmente perceberam que estes homens lindinhos, populares, cheios de charme e de perfume são umas grandessíssimas bestas! Como se dissessem, o teatro também tem de apontar a arma à sua própria testa, deitar abaixo os seus modelos de beleza, de herói, de amante, de coragem, de homem apetecível, de sucesso.
O pensamento deve seguir até ao lugar mais longínquo que conseguir, mas deve manter-se sempre próximo do que queremos mudar, do que queremos nutrir, do que queremos denunciar, para que o que defendemos em palco, seja possível de defender e colocar em prática na vida real. Concordas?