A vergonha tem de mudar de lado
“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
Querida Patrícia,
Chamo-te pelo nome próprio e não pelo apelido porque me remonta a uma zona franca da infância. Era assim que me chamavam na escola primária, é o meu segundo nome próprio, e sinto que, de alguma forma, neste espaço que criámos, posso falar contigo, com os leitores e também comigo, como se corresse eufórica no recreio para os braços dos amigos ou para as sarrafadas do inimigo.
O que é a escrita se não este gesto esgrimido entre o silêncio e o grito? Entre o beijo e o murro?
A palavra pode ainda ser um prego que cravamos ou arrancamos na cabeça de um outro? E a nossa correspondência, este gesto simétrico e recíproco de perplexidades, não trará respostas, bem sabemos, mas pode colocar perguntas, muitas, diversas, pertinentes e inquietantes, como as que fizeste na tua carta.
O silêncio que nos une é antiquíssimo, tens razão, aprendemos a calar antes de sabermos falar. Aprendemos a cruzar as pernas antes que os nossos pés toquem no chão. Aprendemos a gostar de coisas que querem que apreciemos, ensinam-nos cedo aquilo que devemos desejar. Já viste como fomos forçadas a uma lógica perversa de aprendizagem? Precisamos de uma sociedade de desaprendizagem. É urgente que pensemos sobre isto.
«Como chegámos aqui, a um lugar que só se mantém equilibrado e de pé se humilhar quem é livre?», é a última pergunta que me deixas na tua carta. Será que não foi sempre assim, Patrícia? Que é natural ao ser humano cortar a luz aos que já estão na subcave para que pareça ainda mais solar a vista do terraço? Penso nos indígenas, por exemplo, e em como foram espezinhados desde a colonização. Ando a ler um livro extraordinário que, se ainda não leste, tens de ler, é obrigatório. Retrato Huaco, de Gabriela Wiener, conheces?
A autora peruana é considerada uma das vozes mais ousadas e provocadoras das letras hispânicas, e sabes porquê? Porque nas crónicas e na literatura fala abertamente sobre a sua intimidade e dos efeitos do racismo e do colonialismo nas relações com os outros e com o próprio. Que ousadia, não achas? Como é que a Gabriela se atreve a contar a sua história?
No livro de que te falo, a autora conta um episódio num museu etnográfico em Paris, onde se deparou com uma peça intitulada «Mumie d’enfant», múmia de criança, mas não havia criança nenhuma. Trata-se de uma sepultura de uma criança não identificada, mas que está vazia e que é, no fim de contas, «um túmulo profanado, exibido como parte de uma exposição que conta a história triunfante de uma civilização sobre outras. Poderá a negação do sono eterno de uma criança contar tal história?» A pergunta é da Gabriela, mas eu fiquei com a imagem do túmulo profanado, vazio, e com a questão que nos deixa, que é na verdade uma questão semelhante à tua — como chegámos a um lugar que só se mantém equilibrado e de pé se humilhar quem é livre? Ainda mais quando falamos de crianças, quando falamos da dignidade das crianças na vida e também na morte.
Há vários anos que nos chegam diariamente imagens obscenas dos vários cenários de guerra; espera, chamar-lhes cenários é ficcionar o horror e eu não quero fazer isso, não são cenários, são cidades reais, países reais, espaços que deixaram de ter um deus ou uma mãe por perto que os acuda. Sim, porque Deus é pai, mas é pela mãe que continuamos a chamar quando aleija muito.
O que podemos fazer na guerra, Patrícia? O que pode uma mulher perante a guerra, quando sabemos que ainda é movida pela força dos músculos?