A vergonha tem de mudar de lado

por Patrícia Portela,    27 Maio, 2025
A vergonha tem de mudar de lado
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“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte. 

Carta para uma amizade

Obrigada, Conselho de Segurança do Irão por ouvires Mahsa Amini e o movimento Mulheres, Vida, Liberdade: hoje votaste a suspensão da lei que obrigava as nossas irmãs a usar hijab em espaço público.

Obrigada, Brian Eno, autor do jingle de abertura da Microsoft 95, por pedires à Microsoft que pare de disponibilizar serviços de AI e armazenamento digital ao exército israelita e por doares os teus direitos de autor para associações de apoio às vítimas em Gaza.

Obrigada, Warren Buffet, por anunciares que com a tua reforma no final de 2025, contas doar 99% da sua fortuna avaliada em 60 mil milhões de dólares para projectos de “filantropia” enquanto sublinhas que com o 1% que te restar não passarás qualquer dificuldade, nem tu nem a tua família, e continuarás a viver uma vida de luxo.

Obrigada Federação Europeia dos transportes e do Ambiente por denunciares que estamos a consumir mais bio combustível do que a capacidade mundial para a sua produção, contribuindo assim não para uma produção mais sustentável e sim uma desflorestação cada vez mais rápida.

Obrigada Cinema São Jorge, por hasteares a bandeira da Palestina na varanda do cinema no dia  em que se celebra o 77’ aniversário da ocupação da Palestina, um ano depois de a CML ter organizado neste equipamento, em parceria com a Embaixada de Israel, uma festa de celebração do 76’ aniversário contra a vontade e protesto dos seus trabalhadores.

Obrigada, Itália, por garantir direitos iguais às mães LGBTQ+ que fazem in vitro fora do país, independentemente de quem carrega a gravidez.

Obrigada vizinhos, moradores e lojistas no Porto que ajudaram os imigrantes que dormiam na rua há dias, esperando por um carimbo que lhes garantisse a legalidade neste país, oferecendo comida, cobertores, espaço para carregar os telemóveis.

Obrigada Thomas J.Price pela estátua na Times Square “grounded in the stars” e por nos lembrares que o mundo não pertence apenas a homens e a beldades caucasianas. Há muita gente que tem o direito de estar no centro das atenções.

Obrigada Cléo Diára, pela tua inspiração e resistência e por afirmares com orgulho que és imigrante neste país que te parabeniza quando lhe trazes reconhecimento com o prémio de melhor Actriz em Um Certain Regard no Festival Cannes, mas é capaz de tornar a vida de qualquer um num inferno se não tiver nada a ganhar com a tua luta.

Obrigada a todas as mulheres que acordam e dizem: Chega! Eu gosto do meu corpo como ele é! Eu não vou contribuir para uma indústria da beleza que consome o ambiente e as cabeças de grande parte da sociedade.

Obrigada activistas e mulheres trans que protestaram, em topless, à porta do parlamento escocês em Edimburgo: estou curiosa para saber como vos classificará a polícia quando vos quiser prender – será o vosso género definido pela biologia, de acordo com o que o Tribunal Supremo decidiu há semanas num processo largamente apoiado financeiramente por J.K.Rowling,  ou na identidade de género?

Obrigada, Julian Assange, por deixares o fraque em casa e desfilares na passadeira vermelha do festival de Cannes com uma T-shirt onde imprimiste o nome de 4986 crianças mortas na guerra de Israel contra Gaza.

Todos estes gestos e decisões aconteceram esta semana. Muitos mais virão e ampliarão a voz daqueles que hoje parecem silenciados. Juntemo-nos ao protesto, à mudança, ao mea culpa. Por mais pequeno que seja, nenhum gesto é neste momento insignificante. Nenhuma acção inútil.

Não há ninguém capaz de viver sem se importar com absolutamente nada para sempre. 

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