A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
E porque ninguém é capaz de ser indiferente a tudo sempre, é importante o que se escolhe dizer e não dizer.
É importante o que se escolhe escrever e não escrever.
É importante saber o que se quer e o que não se quer dizer porque o que se diz e não se diz interfere directamente no que se faz e no que não se faz que interfere directamente no que se pensa e não se pensa.
Porque uma mentira mil vezes repetida não a torna numa verdade mas torna-a numa afirmação presente no dia a dia ao ponto de não se tornar numa realidade mas entranhar-se nela, repetindo-se nas bocas e nas palavras de outros e de outras, ocupando e integrando os seus corpos ao ponto de se normalizar enquanto mentira que poderia muito bem ser verdade de tão frequente que é.
É por isso que é tão grave perceber que André Ventura, líder do partido de Extrema direita Chega, se tornou nos últimos dois anos o líder político mais presente nos media, tendo sido 108% vezes mais entrevistado do que qualquer outro líder da oposição (até se tornar ele próprio na oposição, mas será oposição?). Ou seja, ouvimos as suas opiniões 108% mais vezes do que as de qualquer outro partido e agora, enquanto segundo partido mais votado, continuaremos a ouvir as suas posições muito mais vezes do que as de qualquer outro partido, começando a reparar que o país se tornou, de facto, nessas opiniões.
É por isso que é tão grave ler nas notícias desta semana que mais de mil milhões de euros em fundos europeus financiam projectos que violam direitos fundamentais dos seres humanos, marginalizando comunidades ciganas ou pessoas com deficiências. Projectos imaginados e criados durante um dos períodos supostamente mais socialistas da comunidade europeia. Isto quer dizer que as instituições europeias, na prática, apoiam abertamente e com chancela de qualidade atitudes que deveriam ser mitigadas, dando o exemplo, através das suas políticas aliadas a palavras que as contradizem (e vice-versa), que este é o caminho a seguir.
É por isso que é tão grave ouvir diariamente as declarações de Trump e habituarmo-nos a elas, normalizando a imprevisibilidade, o insulto, o autoritarismo e o capricho nestes tempos de tantos perigos.
É por isso que é tão grave ouvirmos uma notícia onde se questiona o comportamento dos ciclistas na cidade de Lisboa como justificação para o aumento de acidentes que envolvem bicicletas, nunca questionando o comportamento dos automobilistas ferozes com as quais as nossas cidades nos habituaram a conviver.
É por isso que é tão grave assistirmos diariamente a um genocídio em Gaza desta forma – de um lado ruas destruídas e hospitais atolados de gente que entra e sai enquanto grita e canta e chora e implora e bate com panelas, do outro lado do conflito, homens de fato com ar diplomado a falar ao microfone com frases caras e dúbias. Bastava um segundo de violência pura em directo e com audiodescrição, uma imagem só que mostrasse vítimas e carrascos no mesmo espaço: uma mãe com um filho no colo de cabeça decapitada, uma criança de 5 anos a dizer que quer morrer, um assassino a matar a sangue frio, um violador a penetrar uma mulher inocente, um homem indecente a humilhar, a maltratar a cuspir num pobre, num activista, num desprotegido para percebermos o quão esta situação é inaceitável. Ainda não mostramos tudo. Ainda escolhemos que palavras acompanham que acções e que imagens as mostram ao mundo inteiro, colocando toda a atenção num Presidente da República sem coragem e esquecendo-se de focar toda a atenção na causa da activista Rita, agarrada pelo pescoço, forçada a manter-se no enquadramento para a lição do senhor Presidente sobre a “complexidade” de um conflito onde só inocentes morrem em nome de terroristas e de estados que não são democráticos.
É por isso que é tão grave ter uma carta nos jornais portugueses assinada por meia comunidade do cinema a condenar o cancelamento de um filme de um realizador acusado anonimamente de violência doméstica por um festival alternativo, afirmando que essas denúncias têm um lugar certo para serem feitas (leia-se: estejam caladinhas!), quando o mesmo jornal, poucos dias depois da polémica, dá duas páginas de homenagem a um “monstro sagrado”, de seu nome Gérard Dépardieu, um dia antes de ser condenado a 18 meses de prisão suspensa por crimes de agressão e abuso sexual. E atenção! Esse mesmo jornal é um jornal de referência num país onde uma jornalista acusa um editor nas suas redes sociais de a ter beijado contra a sua vontade e o mesmo coloca-a em tribunal por difamação e ganha, obrigando-a a pagar uma multa de 6000€ e a pedir desculpas publicamente; o mesmo país que condena um professor de natação por abuso sexual de uma aluna de 19 anos e o obriga a uma multa de 840€, permitindo-lhe que volte a exercer a sua profissão com menores; o mesmo país onde uma “estrela universitária” (assim é apelidado) após múltiplas acusações de assédio laboral e sexual ainda tem tempo de antena em horário nobre num dos canais de televisão mais vistos (CNN Portugal) e diz, “à cara podre” que mulheres com trauma estão caladinhas por isso as que o acusam s não estão traumatizadas de certeza e que não é um “mulherengo” porque “no meu tempo dizia-se ter sorte com as mulheres”. Esse mesmo homem, imparável (porque não deve ter amigos que o obriguem a parar para pensar nas agressões que continua a cometer, ou porque ainda tem muitos amigos que lhe perdoam “as escapadelas” e lhe dão palmadinhas nas costas) ainda se atreve a utilizar o seu espaço de crónica mensal – que , inacreditavelmente, continua a ter num dos melhores jornais culturais e de opinião da Europa – o JL – e escreve um artigo sobre o perigo das “perseguições opacas nas democracias” comparando-se ao fundador da Wikileaks Julian Assange, (activista que esteve mais de uma década refugiado na Embaixada da Colômbia em Londres e depois numa das prisões mais perigosas do mundo enquanto aguardava uma possível extradição para os Estados Unidos e uma possível pena de morte) e concluindo mesmo que são perseguições piores do que a censura fascista e de regimes ditatoriais. Resta saber se falamos mesmo de democracias quando falamos de democracias, e se falamos mesmo de heróis perseguidos quando falamos de estrelas universitárias acusadas de assediar laboral, moral e sexualmente dezenas de mulheres durante décadas (mais de quatro) à frente de departamentos de ciências sociais.
É por tudo isto que é tão importante não falar só do que se fala, mesmo que seja importante, mas que se procurem as pequenas vitórias, as pequenas resistências, asnarrativas esquecidas, os detalhes, as posições coerentes ao longo dos anos, e até mesmo tentando entender as muitas pequenas e grandes derrotas que evidenciam por si só a podridão de um sistema que continua a privilegiar e a dar voz sempre aos mesmos, mesmo depois de reconhecer o quão problemático isso possa ser.
Se agradeci na carta anterior a todos os gestos de mudança da semana não foi por necessidade de um gesto positivo (até porque para se ser optimista nos tempos de hoje é preciso ser-se um pouco parva, e não que eu não esteja disposta a sê-lo preferindo sempre a ingenuidade à chico-espertice) mas por necessidade de contar uma e outra e outra vez, uma outra história, um outro lado, uma outra perspectiva, uma outra possibilidade. Sempre a possibilidade.
Se me permites, querida Chéu, gostava de me debruçar sobre estas questões que acima referi contigo, com tempo, com calma. Uma a uma.
Quero perguntar o que achas, se pensas de maneira diferente. Quero tentar explicar, para mim, para ti e para quem nos lê, o que vejo tantas vezes numa notícia banal e o que me faz falta que seja mencionado.
Quero comparar discursos, descobrir novos ângulos, detectar vícios de linguagem, nossos, dos media, dos manuais escolares que tantas vezes me enlouquecem, e com essa comparação encontrar a brecha que nos permitirá um dia destruir velhos hábitos e dourar velhas feridas para que sejam visíveis e exibidas com orgulho de um passado sofrido mas resolvido em conjunto.
Como se pudéssemos reparar os dias à boa maneira kitsungi, a técnica nipónica de colar cerâmicas partidas e preencher fissuras em porcelanas com resina e pó de ouro.
Por onde queres começar?