A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
Numa semana em que actores foram atacados por grupos neo-nazis à porta de teatros (A BARRACA) no centro da cidade de Lisboa, e voluntários que distribuíam comida no Porto, activistas em barcos com mantimentos para Gaza foram sequestrados, activistas que chegaram ao Cairo preparados para marchar até Rafah, foram deportados, convém lembrar algumas mulheres destemidas que não “largam a mão de ninguém”.
Lembremos o discurso de Lídia Jorge (escritora a convidada para proferir o discurso das comemorações do dia nacional 10 de junho) ao afirmar que “a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade, cada um de nós é uma soma do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco, do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou”. Com toda a responsabilidade que isso acarreta de reparar, cuidar, não cometer os mesmos erros.
Lembremos a destemida Maria do Céu Guerra, que ao ver um dos seus actores atacados à porta do Teatro BARRACA, dá a cara para falar em nome da decência e da responsabilidade em cuidarmos uns dos outros, mesmo correndo o risco de ser um alvo de cada vez que se desloca para o trabalho.
Lembremos Cléo Diara, Isabel Zuá e Nádia Yracema, que subiram mais uma vez a palco na Carlista no dia 12 de junho com a sua peça de estreia AURORA NEGRA, em Montemor-o-Novo, no segundo dia de uma plataforma de artes performativas organizada pelo Espaço do Tempo que reúne os espectáculos mais relevantes (e transformadores) dos últimos anos; lembremos quando nos dizem:
Se uma mulher negra feliz é revolução, então eu sou um acto revolucionário!
Se uma mulher negra que mostra fragilidade é revolução, eu sou um acto revolucionário!
Lembremos Sónia Baptista, a coreógrafa camaleão do espectáculo King Size, apresentado no antigo Hospital Miguel Bombarda (uma produção do Teatro Nacional), uma peça que troça da masculinidade tóxica utilizando as mesmas ferramentas com que nos rimos e abusamos diariamente daquilo que imaginamos (queremos? Desejamos) ser a felicidade, a beleza e a celebridade anorética femininas.
Lembremos Aurora Pinho em Inverted Landscapes, espectáculo instalação de André e. Teodósio quando diz: there is more history than geography, there is more pace than space. Quando invertemos a paisagem? Quando ocupamos o nosso espaço para o desocupar do que o preocupa.
Lembremos Bárbara Assis Pacheco e a delicadeza dos seus desenhos que incluem elefantes em tamanho real (e em folhas A4) ou músicos morcegos e visons de Bremen no telão do Teatro Viriato, em Viseu, em pleno COVID 19, chamando-nos à atenção de que a casa foi assaltada, mas se calhar não foi por músicos, mas por vírus.
Lembremos sempre as três marias, Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa: o que disseram, o que escreveram, o que fizeram por todas nós, as agressões que sofreram por nós e perguntemo-nos como é que ainda estamos aqui.
Lembremos sempre sempre sempre Mónica Lapa, coreógrafa, bailarina, professora e criadora do Festival Danças na Cidade há mais de duas décadas. Tinhas a garra de mil leões e a luz de trinta sóis de várias galáxias. Sem ti dançar-se-ia, pensar-se-ia menos nesta terra.
Lembremos Joana Manuel, actriz maravilhosa, activista incansável, mulher de mais do que um corpo inteiro.
Lembremos Piny Orchidaceae, coreógrafa e bailarina que, incansável, cruza dança contemporânea com belly dance e street dance e vogue e coloca todos os ritmos e todos os corpos que não vemos no centro da instituição, obrigando a instituição a abrir as portas e a sair à rua.
Lembremos a poeta Adília Lopes, já cansada desta nossa forma de evitar o quotidiano afundando-nos nele.
Lembremos Clarice Lispector, a escritora que em tempos de fogueira dizia que ficaria sempre do lado das bruxas e nunca esqueçamos: a palavra é o meu domínio sobre o mundo e a barata, essa, está no armário, e se não falarmos sobre ela vamos enlouquecer.
Lembremos Joana Marques, humorista e uma das autoras do programa “extremamente desagradável” que, como diz Ricardo Araújo Pereira, é a única pessoa que conhece que vai a tribunal por desempenhar muito bem a sua função de humorista. Lembremos os delinquentes que já denunciou, e sempre entre gargalhadas.
Lembremos Paula Rego quando diz: “Fiz o meu primeiro desenho com nove anos, quando pintei a minha avó. Ela estava a coser e não sabia que eu a estava a pintar” ou quando diz: “Para os desenhos da imaginação é preciso ter um assunto muito, muito forte para que consiga sair. Não é uma coisa que aconteça todos os dias. Tem que ser realmente com muita intenção e muita força. Quando a gente está a desenhar do modelo, há sempre a linha, o desenho segue porque se está a olhar. Mas quando a gente está a olhar para dentro, vê cá os bonecos e põe no papel dessa maneira, é muito mais difícil,”
Lembremos Helena Almeida quando nos diz: “Muitas vezes comemos joio achando que é trigo e pensamos que maldição é bênção!” enquanto pisa de azul o nosso caminho.
Lembremos Marta Bernardes, escritora, artista plástica, pensadora e dramaturga, a mulher mais aguerrida que conheço e que não baixa os braços perante nenhum desafio.
Lembremos Clara Pinto Correia, romancista, jornalista, académica, uma mulher que sempre pegou fogo a qualquer contexto e os homens nunca lhe perdoaram por isso.
Lembrar-me-ei sempre de ti, querida Chéu, por seres quem és, por escreveres como escreves, sem medo do que sentes, do que vês do que desejas.
O que estas pessoas têm em comum é serem todas mulheres e todas artistas. Todas destemidas. E com muito menos visibilidade do que deveriam ter se o compararmos com qualquer homem da nossa praça. Invisíveis no quotidiano. Invisíveis na televisão em horário nobre. Invisíveis nas nossas vidas. Mulheres oráculo que deveriam ser consultadas sobre assuntos urgentes e milenares para que partilhassem a sua visão do mundo com regularidade. Nos órgãos mediáticos, na discussão parlamentar, nos cafés, nas escolas, nos teatros, nos museus, na rua. Impressas em jornais, em t-shirts, em livros, em compêndios, em leis. Para que não nos esqueçamos que a arte “é o pressentimento da História” mas também a sua possível redenção e que o combate contra a injustiça se faz da presença e da união dos corpos, se faz da coragem daquelas que se atrevem a ocupar o centro para resgatar os nossos dias da narrativa vigente que teima em fazer desaparecer grande parte da população.
Lembremos todas as mulheres artistas, as que adoramos, as que nunca conhecemos, as que inevitavelmente lutaram para que pudéssemos estar aqui e saibamos que um ataque a qualquer uma delas é um ataque ao nosso direito de estar em palco, de ser visível! Sempre!