A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
Querida Chéu,
Não é demais reforçar o apreço que tenho por esta nossa correspondência que e segura e dá ritmo às semanas.
Por vezes pergunto-me porque escrevo e confesso que nos últimos tempos, não sendo dada a grandes dúvidas nessa matéria, tenho perdido algumas convicções.
Manter uma predisposição para viver com facilidade nunca esquecendo os princípios que nos regem parece algo quase irreconciliável e impraticável no quotidiano de um século XXI. Parece ser sempre necessário dar um jeitinho, fechar os olhos aqui e ali, sorrir e acenar, fazer de conta que não percebemos que nos tratam por parvas ou imbecis, ou pior, por artistas (que hoje parece sinónimo de pessoa inútil ou jarra de decoração).
Mas há poucos dias, e ao cuidar do último livro MANUAL PARA ANDAR ESPANTADA POR EXISTIR que lancei no último dia de feira (e contigo, ao vivo, na plateia, que bom!), percebi que escrevo porque vivo assustada.
Assusto-me quando vejo a sic notícias a passar um vídeo viral nas redes sociais de um saxofonista a tocar numa festa no Líbano enquanto drones e mísseis atravessam o céu para caírem em Israel e não percebo se quem escolheu esta notícia vê a ironia de uma Europa em festa há 80 anos enquanto o resto do mundo morre por sua causa. Poderemos mesmo escandalizar-nos com este vídeo? Ou deveremos reconhecer-nos?
Assusto-me quando vejo outro telejornal dar vinte minutos de um directo a um locutor que debate com detalhe o chão ligeiramente abaulado de um hospital em Haifa, como prova cabal de que o Irão quer destruir Israel, quando Israel é responsável por matar 60 000 civis em Gaza em legítima defesa, continuam a dizer a maioria dos entendidos.
Assusto-me quando Netanyahu, responsável pelas centenas de vítimas que continuam a morrer em Gaza, agora por levantarem sacos de farinha em centros de ajuda humanitária, diz que estes ataques do Irão a Israel são “muito incómodos, o seu filho até já teve de adiar o seu casamento duas vezes”. Assusta-me que alguém escolha dar prioridade a esta preocupação em horário nobre no telejornal.
Assustam-me as palavras que leio diariamente, em jornais, em revistas, mas também em livros, defendendo posições como se fossem unívocas e as únicas que se devem ou podem defender. Nunca a máxima de Slavoj Zizek foi tão pertinente como agora: É mais fácil imaginar o fim do mundo (e eu acrescentaria é mais fácil destruir o mundo) do que imaginar o fim do capitalismo.
Assusta-me quando um escritor medíocre, e peço desculpas àqueles que nos lêem e o adoram, sei que é muito aplaudido, afirma, que o discurso da Lídia Jorge no 10 de junho “foi a sua melhor obra e o seu testamento”.
Lá está, se matarmos os grandes escritores ficam mesmo só os medíocres, curiosamente os que são pagos para escrever e os que controlam actualmente as narrativas.
Assusta-me quando o grupo editorial do qual a Editorial Caminho faz parte edita, numa outra editora (valha-nos isso!), ao lado de uma Cláudia Galhós, autora e crítica de dança do Expresso e do Jornal de Letras ou por exemplo, de um mais recente Bernardo Mendonça, que publicou uma colecção das suas magníficas entrevistas em a Beleza das Pequenas Coisas, um livro intitulado Woke fizemos, um livro onde pessoas ilustres como Jaime Nogueira Pinto (político de direita, empresário e escritor, assim se denomina) ou Rita Matias (deputada pelo Chega na Assembleia da República) explicam a anatomia de um totalitarismo suave que assombra a nossa sociedade. A notícia do lançamento deste livro (marcado para uma terça-feira sanjoanina de 24) chocou-me na quinta-feira anterior, mas já foi amplamente ultrapassado pelo livro A NOVA PESTE de António Maria Carrilho (ex-ministro da cultura e condenado por violência doméstica), lançado esta sexta-feira na feira do livro pela editora saída de emergência. O lançamento contou com a presença de um outro ex-ministro da Cultura Adão e Silva (responsável pela razia irreversível a uma geração de artistas nos apoios bienais da dgartes de 2023, priorizando as grandes companhias com bojudos apoios quadrienais). O debate na feira do livro tinha o magnífico titulo de: ser ou não ser woke, eis a questão.
Lá está, enquanto o neonazismo cresce em Portugal, e nos arraiais se houve cantar o hino nacional enquanto se faz a saudação nazi, o mundo editorial, esse reduto precioso do pensamento, vem confirmar que o fim do mundo se deve ao feminismo, ao anti-racismo, e a todas aquelas minorias que se atrevem a defender a diversidade e os direitos humanos.
Assusta-me saber que são estes os livros que vendem, argumento fatal sempre que questionamos o seu propósito. Não são estes que escrevo.
Assusta-me imaginar que cada vez mais as editoras escolhem porque vende e não porque … se escreve. E fazem-no sem vergonha.
Mas se calhar é mesmo por isso que devemos continuar a escrever.
Escrever para que não haja só uma narrativa ou só narrativas controladas e controladoras; nem só narrativas que dão dinheiro imediato (e destruição maciça a muito curto prazo); nem só narrativas que são bem pagas porque servem propósitos que dão lucro financeiro.
Escrevo porque não acredito numa economia só de mercado, e sim numa economia do cuidado. O investimento não pode ser só na carteira, e a narrativa deve ser sobre aquilo que é para nós importante. E o que é para nós importante? Viver.
E se fizéssemos esta pergunta a qualquer livro, a qualquer teoria, a qualquer estratégia militar, a qualquer decisão política, a qualquer rede social, as conclusões poderiam ser bem diferentes.
Esta guerra é boa para viver?
Este livro ajuda-me a viver?
A contar melhor a minha história ou a história do mundo?
Este hambúrguer, este saco de compras, este carro, esta casa, contribuem para eu viver melhor?
Alerto para o facto de dizer viver, e não ser feliz, ter prazer, ter riqueza, satus quo, já nem me atrevo mesmo a usar a palavra crescer.
Ontem, estava eu a sair da Feira do Livro e os EUA atacavam uma base nuclear no Irão? Sim, O Ocidente atacava uma base nuclear no Irão.
E agora? A vergonha, a razão, a certeza, o direito, a mentira estão do lado de quem?
Peguei na obra de José Gomes Ferreira para escrever um novo livro porque as Aventuras de João Sem Medo são sobre não ter medo de saltar muros quando se tem imaginação. E se sabe contar uma outra história contra a história que nos querem impor.
São as narrativas, as que assumimos, as que contamos, as que ignoramos, as que distorcemos quem comanda os nossos dias e orientam as nossas decisões, do casamento ao voto, da escola ao emprego, e com isso são responsáveis pelo sentido e pela qualidade da vida que vamos vivendo.
Escrevo-te isto e imagino já alguns incrédulos leitores e leitoras que já se abandonaram à narrativa única a responder: “Patrícia isto é tudo por causa do petróleo e do dinheiro, faz tudo parte de um monopólio económico pré-decidido contra o qual não podes fazer nada”. Mas eu acho que posso. Se eu passar a ter vergonha de não ter certas atitudes e de ter recorrentemente outras, consigo escrever e ser outra história.
Ou voltando ao tema do momento, relembro a minha amiga Mahsa Mohebali, autora iraniana de renome, censurada depois do seu livro entrar para o “top10” dos livros mais lidos entre presos políticos no Irão (relembro que no Irão são quase todos presos políticos, ou seja, leitores de grande gabarito) após um terramoto grave no país (que Kiarostami também filmou). O livro contava a história de um país onde os seus cidadãos, de várias gerações, após um terramoto de proporções gravíssimas, se juntavam para reconstruir o país mas também para derrubarem o governo. O livro tornou-se perigoso porque se tornou possível, porque imaginou outra sociedade.
Ontem na capa do the Guardian uma citação de Netanyahu afirmava que Israel atacava o Irão para salvar as mulheres iranianas da sua prisão.
Lá está, a narrativa de Mahsa Mohebali é censurada, a narrativa de Netanyahu vem nas primeiras páginas dos jornais. Chegam a públicos diferentes, ou chegam ao mesmo público, mas com impactos diferentes.
Poderão criticar-me e dizer-me que estou a falar de exemplos extremos e que nós, simples e humildes escritores da trama diária deste lugarzinho chamado Chora-que-logo-bebes, não nos deveríamos comparar aos grandes!
Hoje nem nos devíamos comparar, temos muita sorte em existir!
Lá está a narrativa-mor a funcionar outra vez, não é?
Hoje, nenhum livro parece ter força se não tiver uma narrativa maior por traz dele, uma campanha de marketing atrás dele, uma celebridade atrás dele. Ou o contrário: hoje há uma narrativa maior que tenta convencer os escritores de que livros como os que fazemos não têm força, não vendem, são “alternativos”, são de “nicho”, até desistirmos todos de existir ou de andarmos espantados e cumprirmos assim a auto-profecia, cedendo o lugar, às narrativas-mor…
Grita-se e fala-se a rodo em entrevistas que a cultura e a arte são indispensáveis porque livres e diversas, mas é conversa de fachada, cartazes colados em muros erguidos e controlados por essas mesmas narrativas que são pagas – sim a maioria das narrativas que ouvimos mais alto são pagas por empresas, por governos, por mecenas, por partidos – enquanto o terreno fértil da imaginação e da possibilidade, da filosofia e do exercício utópico vive à míngua e já nem um jornal existe onde se possa escrever um folhetim como o que José Gomes Ferreira escreveu durante o ano em 1933 ano em que se iniciou o Estado Novo. Um folhetim sobre um certo João Sem Medo que queria saltar um muro para descobrir a Floresta Branca.
E nós, parece-me, estamos em 1933…
Hoje, nem a Bíblia ou o Corão causam grande estrago ou encanto com as suas palavras, enquanto as suas entourages sim, as suas igrejas e as suas mesquitas lideram revoluções, peregrinações, guerras ou mesmo, correntes intrincadas de abusos de todo o tipo.
Preferimos o bispo ao santo, o imã ao profeta, o director do teatro ao dramaturgo.
Escrevo porque vivo assustada e fascinada, e talvez essa combinação seja fundamental para continuarmos sem sucumbir à narrativa mor ou ao prazer do clic imediato.
Escrevo porque quero ser como o técnico do Teatro Sarayet em Rammallah que conheci em 2007 quando lá apresentei Flatland, o espectáculo que deu depois origem ao livro Para Cima e não para Norte. Ele disse-me: eu não vou projectar documentário nenhum de artista multimédia internacional nenhuma naquele muro. Não fui eu que construi o muro, não sou eu que quero viver dentro dele, por isso, para mim não há muro, eles se quiserem vão lá fazer cinema no muro, eu não.
Eu quero ser como o jardineiro que também conheci em Ramallah nesse mesmo ano. Tinha na altura quase 80 anos e veio falar comigo por eu ser portuguesa, e não falou no Figo, na altura não era o Cristiano Ronaldo, e sim de José Saramago. Contou-me do dia em que o viu discursar sobre os escombros deste mesmo teatro que tinha sido destruído uns dias antes por tanques israelitas (por nenhum motivo aparente, ou seria para alterar ou silenciar a narrativa de José Saramago na região?). Ao que parece, a destruição do teatro não impediu José Saramago de manter o seu calendário e de falar sobre a causa Palestina, ali mesmo, e para o mundo inteiro.
Este jardineiro disse-me na altura:
Sabe, ontem passaram aqui outra vez os tanques israelitas, é um divertimento que praticam há 30 anos, eu trato do jardim na rotunda, e quando as flores começam de novo a crescer, eles atravessam a rotunda a direito em vez de irem à volta e destroem o jardim.
E eu recomeço no dia seguinte a tomar conta do jardim.
É por isto que escrevo. Porque escrever é um dever cívico mais do que um talento, mais do que uma missão ou uma sorte.
Escrevo porque cuidar das palavras, cuidar das narrativas e contar das histórias dos jardineiros que cuidam dos nossos jardins é urgente. Escrevo porque me preocupo e tenho muita vergonha de tudo o que não nos causa hoje preocupação urgente e devia.