A vergonha tem de mudar de lado

por Cláudia Lucas Chéu,    3 Julho, 2025
A vergonha tem de mudar de lado
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“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte. 

Ontem, quando acordei, lembrei-me da Mariana Alcoforado. A célebre freira e escritora do séc. XVII, nascida em Beja, que ingressou num convento com apenas doze anos, disposta a entregar por inteiro a sua vida e a sua paixão a Deus. Porém, um acaso trocou-lhe as voltas à paixão imaterial e pô-la em marcha na direcção do desejo da carne, quando conheceu Noel Bouton — um cavaleiro e marquês francês, que esteve envolvido na Guerra da Restauração. Deu-se então o encontro que gerou um amor impossível e que se encontra registado na obra Cartas Portuguesas. Sobre a autoria das cartas permanece até hoje a dúvida — quem as escreveu? Não se duvida dos factos relatados nas epístolas, da existência de Mariana e do Marquês e da relação platónica entre os dois, mas não se conseguiu ainda determinar quem registou este encontro. A grande dúvida é: uma mulher do séc. XVII, e ainda por cima freira, seria capaz de escrever aquele romance epistolar?

Esta semana quero falar sobre paixão. As paixões que movem uma pessoa, seja por alguém ou por uma profissão, por exemplo. Quais são as tuas, actualmente, querida Patrícia? Eu não sei se é da meia-idade e do caos em que vivemos, mas tenho-me sentido desapegada das coisas do mundo. Acredito que seja até a recusa do mundo, dado os tempos violentos e de retrocesso que estamos a viver. Estou certa de ser apenas uma fase e sei que não estou disposta a render-me. As nossas cartas têm sido parte do combustível para me salvar da desolação. E há um lema de vida que estou disposta a abraçar — Apressa-te a ser lento. Sinto que a velocidade é uma auto-estrada para a loucura, uma máquina de produzir loucos e loucas. Um dos meus maiores receios na vida é o de enlouquecer, carrego este medo desde pequena. Talvez por ter crescido com uma mãe com uma doença mental. Tenho medo de enlouquecer, Patrícia. E os tempos que vivemos empurram-nos para essa velocidade, para essa auto-estrada onde não conseguimos assimilar a paisagem interior e exterior.

Uma das coisas que me tem mantido minimamente sã ao longo da vida é a paixão. A paixão é sempre um pilar seguro que me prende à alegria, ao ímpeto, à mudança sadia. Mesmo quando assume sintomas de patologia como a obsessão e o desinteresse por tudo o resto. Escreveste na tua última carta sobre aquilo que te assusta, e sobre escreveres porque tens medo. Sinto precisamente o mesmo, tal e qual. Mas também escrevo por paixão, para fugir a esse medo castrador que, como um vírus, contagia e se alastra individual e colectivamente.

Penso que não foi por acaso que ontem acordei e me lembrei da Mariana Alcoforado e da narrativa da sua paixão. Da impossibilidade da sua concretização e como isso aumentou um duplo fogo por alguém e por Deus. Precisamos de paixão para sobreviver nestes tempos sombrios, da força inexplicável que tem algo que não escolhemos, mas que nos possui.

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