A vergonha tem de mudar de lado
“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
Querida Chéu,
Penso, não raras vezes, que foi o sono eterno negado a tantas crianças, a tantas mulheres e a tantas vítimas de atrocidades consecutivamente perpetradas que nos transformou nestes seres hoje tão incapazes de lidar com o sofrimento alheio.
Penso tantas vezes quão difícil é não sucumbir à raiva, à vingança ou à destruição quando o nosso passado é ele mesmo feito de destruição, vingança, raiva, em suma, humilhação permanente.
Este fim de semana, no Clube de Leitura de Lagos organizado pela Biblioteca Municipal de Lagos, discutimos o livro Os Dias Da Birmânia, um olhar vívido dos últimos anos de um império britânico, hipócrita e decadente de um então jovem oficial de polícia Eric Arthur Blair, hoje conhecido como George Orwell. Tal como Gabriela Wiener, de quem falavas na tua carta, que se atreveu a escrever sobre a sua vida íntima num contexto racista e colonialista, também Orwell nos oferece um retrato de uma sociedade que nunca poderá ter salvação quando nenhum dos seus elementos acredita nos mecanismos, nas leis ou na autoridade vigente. Nem aquele que comanda, nem o que é forçado a obedecer, nem o que se sente sem saída. E o mais curioso é que este retrato, pleno de detalhadas descrições de lugares e personalidades de um tempo e terra distantes, parece aplicar-se a qualquer país com um passado colonial enquanto opressor ou oprimido. Conheces algum que não o tenha?
Nesta obra todos reagem de acordo com o que “lhes dá mais jeito ou lhes parece mais confortável”, dizia uma das participantes no clube. Deixo-te aqui alguns exemplos:
– O magistrado local que aceita subornos dos dois lados, manipula pessoas e situações para subir na vida não olhando a meios para chegar a fins, pois é assim que o sistema britânico funciona, um homem que tem orgulho na sua obesidade e fel por lhe garantirem o sucesso que sempre desejou (Quantas vezes não ouviste dizer, no desempenho sincero de uma função de liderança: “não tens jogo de cintura para um cargo político ou não tens estofo para estes cargos de poder”, como se fosse mais aceitável ser um filho da puta na direcção de um qualquer departamento do que ser alguém que, ao não concordar com o regime imposto, decida despedir-se de um cargo numa empresa na qual não acredita?).
– A mulher do magistrado calhorda, a única pessoa a quem ele dá ouvidos, a esposa fiel e dedicada que se preocupa com a possível reencarnação da alma do marido num sapo ou num rato após a sua morte (e por isso lhe sugere sempre realizar boas acções para compensar as más), mas que acaba por apoiar todos os seus vis planos (Quantas mulheres, mães, avós, conheces que apoiam ou apoiaram inquestionavelmente os seus maridos, mesmo contra os seus filhos ou filhas, sofrendo em silêncio por terem tomado decisões com as quais não concordam?).
– O madeireiro que leva uma vida simples, sem grande reflexão, de preferência nunca sóbrio e sempre em busca do prazer (quantas pessoas te rodeiam já te disseram: para quê preocupares-te? O mundo foi sempre assim. Bebe mais um copo! Não penses nisso!).
– O médico local, um bom coração mas com um fascínio incompreensível pelos colonizadores, acreditando que tudo o que é europeu é bom, permitindo por vezes insultos e um tratamento que não seriam, de outro modo, admissíveis (quem nunca?);
– O europeu que se apaixona por uma mulher local (que não o ama mas deseja o seu prestígio) mas está convencido que deve casar com uma mulher europeia que não ama mas lhe confere o status quo necessário para manter a sua posição (conheces alguém assim?).
Qual a saída para uma sociedade onde a nossa sobrevivência depende mais da capacidade de encaixe numa civilização decrépita ao invés da procura e implementação de novos modelos de sociedade em democracia?
Poderão os nossos dias alguma vez ser reparados? Sarados?
Perguntavas tu o que poderemos fazer em tempos de guerra, enquanto mães, enquanto, irmãs, enquanto mulheres, se não desejamos usar a força dos músculos para combater? Será a força das palavras suficiente para fazer frente às atrocidades a que assistimos? Talvez a força do cuidado? Lendo Orwell talvez me atreva a dizer a afirmar que escrever, dizer o que se pensa (e não será isso o mais difícil?), recusar viver assombrada pode ser um caminho. Como o jardineiro que conheci uma vez em Ramallah e que todos os dias cuidava do jardim de uma das rotundas principais da cidade. Eu olhava para a rotunda e vi apenas terra revolvida e todos os dias via o jardineiro a semear novas plantas. Apesar de saber que mal brotasse uma flor, um tanque israelita atravessaria a rotunda seguindo em frente para destruir o seu trabalho, todos os dias, o jardineiro se levantava à mesma hora para voltar a plantar um novo jardim. Basta um a resistir, querida Chéu. Ou duas. Porque não nós?