A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte.
Querida Patrícia,
Escrevo-te no dia em que Trump está a horas da tomada de posse; nenhum alto dirigente da UE foi convidado. A cerimónia política de Trump irá começar com uma missa, depois de ontem o energúmeno ter discursado perante uma multidão de americanos que o idolatra, num evento que era uma mistura estética de concerto pop com a boa e velha propaganda da Alemanha nazi. Palavras para quê? Todas menos ámen.
O que é mais importante neste dia, o que nos pode preocupar a sério? A radicalização e o extremismo. Trump promete cem ordens executivas num dia, e uma das principais, para começar, é a da imigração, da deportação em massa, continuando a insistir sem provas, mas cheio de convicção, na ligação entre imigração e violência no país, quando Trump é o maior defensor da licença de porte de armas para os cidadãos americanos. Trump é coach, mas ao contrário, um líder inspiracional do discurso de ódio que lança para o mundo inteiro.
Como dizes no final da tua carta, basta resistir, sim, subscrevo, mas há dias em que a tarefa parece mais áspera. Foi declarado o cessar-fogo na faixa de Gaza, e ontem, novo ataque de Israel, desrespeitando o acordo. Graças a um amigo que me alertou, ouvi as palavras do Embaixador de Israel em Portugal, Oren Rosenblat, numa entrevista para a CNN em que afirma que «não há fome e não há sede em Gaza, nunca houve fome em Gaza, até há gordos na Faixa de Gaza», escrevo como ele disse, «gordos», e que «têm também linhas de água, as pessoas na Faixa de Gaza bebem água de “bottles”». O Embaixador de Israel em Portugal foi à televisão mentir e dizer que a imprensa é que é mentirosa e que devia ter vergonha. Cá está, a vergonha de que lado está? A vergonha tem definitivamente de mudar de lado.
São dias escuros de um Inverno por fora e por dentro, querida Patrícia. O mundo está de pernas para o ar e para lê-lo é preciso fazer o pino. Falavas de Orwell na tua carta, e mostrei-te que, por coincidência, estava num quarto com um candeeiro feito com a capa da obra 1984 em vidro. Ambas recebemos alguma luz do mesmo autor, tu, literariamente, eu, literalmente. E toda a luz é bem-vinda.
Voltando a Trump 2.0., o homem que promete uma mudança profunda para o seu país e para o mundo. Ouvi Megyn Kelly, uma mulher que faz parte da equipa de transição de Trump (não, não é uma transição de género, quem nos dera; como sabemos, Trump opõe-se a praticamente todos os direitos adquiridos pela comunidade LGBT e aos direitos das mulheres, é por isso que é tão esquisito ver uma mulher na equipa dele a dizer coisas como eu vi e ouvi): «Na América temos o direito da liberdade de expressão, temos o direito de ofender, de provocar, de incomodar, e de defender aquilo em que acreditamos, mesmo que o achem controverso.» Patrícia, uma mulher a dizer isto, a defender o discurso de ódio a que chama liberdade de expressão. Há uns tempos, vi uma imagem de uma senhora com uns 80 anos com um cartaz preso ao andarilho, numa manifestação feminista, em que se podia ler: «CAN’T BELIEVE I STILL HAVE TO PROTEST THIS SHIT» Juro que penso o mesmo. Imagino que vou ter de o fazer como aquela senhora, até andar de andarilho ou arrastadeira. Estão 25 mil polícias prontos para a grande cerimónia de Trump. Entretanto, a missa já começou. Ele e a mulher, Melania, estão dentro da igreja. Relembro que uma das medidas que este crente em Deus-todo-poderoso anunciou ontem durante o comício é de conflito. Ao nível da política externa, relativamente à Europa, quer dividir a Europa. E nós que aqui estamos nesta pangeia europeia, fazemos o quê? Tememos Elon Musk e esta América corporativa que nos lança várias ameaças? Zuckerberg e os apoiantes de Trump? Dizem que vêm todos proteger a classe média e que são contra as elites. Rio-me, sem ter graça nenhuma. E de repente, a campainha toca. Deixo a carta que te escrevo e vou ver. O carteiro. Não traz uma carta tua, só para a semana. E é o carteiro digital que ma traz. O carteiro trouxe um livro de Clarice Lispector, Um Sopro de Vida, da Companhia das Letras, e na contracapa leio: «Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe.» Continuemos a tentar, com ou sem medo, querida Patrícia. Duas mulheres escritoras. Duas artistas, duas cidadãs. Que novos obstáculos teremos de enfrentar nos próximos tempos?