A vergonha tem de mudar de lado

por Cláudia Lucas Chéu,    4 Fevereiro, 2025
A vergonha tem de mudar de lado

“A vergonha tem de mudar de lado” trata-se de uma troca de correspondência pública entre as escritoras Cláudia Lucas Chéu e Patrícia Portela. Cartas que pretendem colocar questões sobre a actualidade e reflectir em conjunto com os leitores. Sempre às terças na Comunidade Cultura e Arte. 

Querida Patrícia,

Hoje, enquanto preparava o pequeno-almoço à minha filha antes de a levar à escola, leio nas parangonas de um jornal digital que as creches portuguesas subiram o horário alargado em 42% nos últimos cinco anos. Fiquei perplexa ao ver que em alguns casos o horário alargado é das 6h30 à meia-noite. Existem em Portugal 1806 creches a funcionar com horário alargado (mais de onze horas por dia), e a maioria em Lisboa (322), cidade onde vivo com a minha filha. Atenção que estamos a falar de creches — espaços frequentados por crianças muito pequenas, normalmente dos seis meses aos cinco anos de idade.

A minha perplexidade não tem que ver com as mães que têm de fazer uso deste horário, nem com as instituições que conseguem providenciar estes cuidados até tão tarde, mas com a forma como estamos a viver e o pouco ou nenhum cuidado que há por parte das entidades patronais quando contratam uma mãe de crianças pequenas. Não há leis que os obriguem a ter esse cuidado, portanto continuamos a considerar legítimo que o principal cuidador de uma criança, seja homem ou mulher — embora saibamos que continuam a ser maioritariamente as mães e as mães que trabalham —, se comporte no trabalho como se não tivesse quem dependesse em casa da sua disponibilidade física e emocional.

Fui ler depois a notícia e, voilà, apenas tinha o depoimento de uma mãe, alguém que tem de deixar o filho neste horário alargado por não ter alternativa ao horário profissional. Procurei por mais notícias sobre o assunto e não encontrei um único testemunho de um pai. Achas que é por acaso, querida Patrícia? Eu acho que não, tenho a certeza que não. Ambas somos mães, não sei por ti, mas por mim posso falar: quantas vezes senti o peso da culpa ao delegar as minhas responsabilidades maternais por ter uma actividade profissional com horários caóticos?

Felizmente sou uma privilegiada porque tenho pais que sempre ajudaram nos cuidados com a neta e não tive de recorrer a uma creche com horário alargado. Mas se tivesse, será que sentiria vergonha e culpa por isso? Será que me sentiria julgada sob os olhares de outras mães e pais? Quantas vezes me senti culpada por estar a trabalhar e não estar perto da minha filha? Foram tantas, Patrícia, tantas. Senti também vergonha por não estar perto da minha filha em situações de lazer e por me esquecer momentaneamente que sou mãe. É uma vergonha subterrânea, incrustada na pele, um constrangimento milenar. A verdade é que tenho a certeza de que este peso da responsabilidade, da culpa e da vergonha continua a recair maioritariamente sobre os nossos costados de mulheres e de mães.

Estou certa de que os homens que são pais têm menos prejuízo na consciência quando estão no trabalho e longe dos filhos, tudo porque não carregam o estigma social, cultural e moral — um prego cravado até ao osso da mulher. Até do ponto de vista do adultério. Há uns anos, lembro-me de ficar chocada com um comentário do pediatra da minha filha; atenção, trata-se de um médico excelente, cuidadoso e afectuoso com as mães e as crias, mas não posso esquecer quando me disse: «Sabe, Cláudia, o adultério dos homens quando há filhos pequenos é normal, acontece muito, porque de repente as mulheres estão focadas no bebé e o homem deixa de ter atenção.»

Juro que me ia dando uma sulipampa. Estamos no século XXI, não temos de ouvir este tipo de barbaridades. Mas a verdade é que isto, este pensamento machista e condescendente, reflecte-se na forma como pai e mãe encaram o projecto «cria», como se a fêmea fosse responsável por cuidar e dar atenção a todos de igual modo e sem excepção, e o homem, o pai, uma criatura que fica desamparada perante o milagre da procriação. E onde fica a mulher que, por acaso, é mãe no meio disto tudo? Quem é que dá atenção à mulher quando é mãe e atravessa um período avassalador de mudanças hormonais, emocionais e práticas? Lembro-me da primeira vez que me chamaram mãe na maternidade. Juro que pensei que estavam a falar para outra pessoa. «Então eu agora sou a mãe?» Até à data, sempre que ouvia a palavra mãe lembrava-me da minha e agora a minha tinha sido transformada em avó e também me confessou que estava a ter dificuldade em lidar com a nomenclatura e com o peso que a palavra acarretava.

Mas voltando à questão do adultério quando há filhos pequenos, o homem é quase ilibado pelo motivo que o pediatra da minha filha enumerou, e que é a voz da razão da sociedade patriarcal, mas e se for a mulher, a mãe, a trair o marido e a pôr em causa a família quando ainda traz uma criança nos braços? A palavra aqui é vergonha, não é? Não há dúvidas que a mulher será atravessada por uma seta de vergonha e mais o risco de humilhação pública. Não nos podemos esquecer que em  algumas zonas do globo, uma mulher ser infiel ainda dá direito a ser assassinada, mas um homem não. Obviamente isto pesa, estas desigualdades pesam há séculos. Do nosso lado, a culpa, a vergonha e até a morte, do lado dos homens, a leveza do disparate e a obrigatoriedade do perdão.

Recordo a pintura de Caravaggio — Salomé segurando a bandeja com a cabeça de João Baptista. Salomé considerada uma mulher sem vergonha, quando tudo o que fez foi verbalizar o pedido da mãe. Herodias, mãe de Salomé, pediu a cabeça de João Baptista porque a tinha difamado por se ter casado com Herodes, o seu cunhado. Herodias lembra-me que Gertrudes e Lady Macbeth de Shakespeare podiam ser uma única mulher. Shakespeare sabia bem o peso cristão da mulher na representação do mal e do pecado. A cabeça de João Baptista foi a concretização da vingança da mãe de Salomé através do poder sensual da filha. Salomé dançou, encantou o rei e teve direito a pedir o que quisesse. Perguntou à mãe o que havia de pedir. «A cabeça de João Baptista.» Penso que a mãe deveria ter pedido só a língua, uma vez que o crime era difamação, mas os tempos eram outros, mais tétricos. A cabeça de um homem servida numa bandeja, um homem que foi considerado santo. E Salomé considerada uma personificação do mal. Do lado das mulheres, desde a génese, a culpa, a maldade, a origem do pecado. A cabeça de um homem servido numa bandeja, um horror que ficou registado para a eternidade, mas quantas cabeças de mulher se continuam a servir em bandejas todos os dias, metafórica e literalmente?

Relembro de cor a pergunta com que finalizas a tua carta: por onde começar a mudança? Pelo infinitamente pequeno ou pelo infinitamente grande? Digo-te que, tal como na escrita, só conheço o tipo de construção que se ergue passo a passo, uma palavra a seguir à outra. Que mesmo as viagens mais longas começam com um passo. Um passo infinitamente pequeno pode ser infinitamente grande? Acredito que sim. Por exemplo, há uns tempos o meu pai salvou um pássaro da boca do gato. Resgatado pelas mãos do meu pai, o pobre pássaro, ainda torpe mas ileso das presas do felino, foi libertado pela janela. Vimo-lo voltar para o ninho da árvore, provavelmente à procura da mãe.

Quantas de nós ainda estamos presas ao ninho? Porque continua a ser o ninho uma palavra que assenta maioritariamente no género singular feminino contrariando até a gramática portuguesa?

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