A vida como obra de arte
Podemos olhar para a nossa vida de várias formas. Há quem a veja como um processo biológico: reduzidos à nossa condição de seres meramente orgânicos, vagueamos pela terra de forma a cumprir um imperativo darwinista. O objectivo passa por sobreviver pela adaptação, tentando ao máximo que as condições externas não se abatam sobre a nossa vida.
Tenta-se controlar o que nos rodeia. Tenta-se controlar pandemias. Tenta-se controlar incêndios. Tenta-se controlar terramotos e maremotos. Tenta-se controlar as outras pessoas. Tenta-se, no fundo, tornar constante aquilo que é invariavelmente variável. Mas a que custo? Nesta concepção, dá-se um valor instrumental à arte e à cultura, são-nos úteis na medida em que trazem progresso. O princípio máximo é a sobrevivência, não o florescimento. Uma restrição bárbara da potencialidade humana. Tornamo-nos em seres utilitaristas.
A pandemia parece contar-nos que esta forma de abordar a vida possivelmente não é a mais indicada, pelo menos na sua totalidade. Confinados nas nossas casas, lutando pela sobrevivência no seu sentido mais lato, a vida parece saber a pouco. É demasiado racional. A paixão, o maravilhamento, o vibrar que constituem a vida plena desaparecem-nos entre os dedos.
Felizmente, há outras formas de ver a nossa vida. É a razão pela qual escrevo esta crónica. Não está tudo perdido. E se víssemos a nossa vida como uma obra de arte? Não é uma ideia nova. Os gregos antigos, Nietzsche, Foucault, Proust, Wilde, Pessoa, todos “brincaram” com esta concepção. Será que sobrevive ao escrutínio?
Se assumirmos esta visão, o valor supremo deixa de ser a sobrevivência para se tornar apoíesis. A vida é criação, é inovação, é criatividade. Fala-se em florescimento, mas acima de tudo, fala-se em significado. Não podemos controlar aquilo que nos rodeia, o ano de 2020 ensinou-nos isso. Tentamos atribuir aos acidentes um significado. Falhamos sistematicamente. Estes acontecimentos não tem de ter um significado. No entanto, a nossa vida tem que o ter, senão sentimo-nos vazios. Isso é o que a arte nos dá, significado. O significado não é racional, não é darwinista, não é objectivo. Trata-se de algo intuitivo, emocional e intrinsecamente nosso. O mundo externo pode atribuir-nos uma função, mas nunca um significado. Ao olharmos para a nossa vida como uma obra de arte e para nós com um tipo especial de artista, percebemos que cada segundo, cada pincelada tem uma razão de ser. Somos únicos, na medida em que somos automaticamente irreproduzíveis . Esta concepção não é mutualmente exclusiva com a primeira descrita, uma pitada de racionalidade orientadora pode tornar a nossa vida mais bonita. Aliás, quantas obras-primas não tiveram estudos preliminares ? Um artista pode pintar com auxílio da razão, mas o sentimento e a escolha intuitiva da cor são supremos.
A COVID não nos trouxe apenas confinamento, morte ou crise. Não tem só consequências tangíveis. Trouxe também terror metafísico, afetou-nos como seres enquanto seres. Encurralou-nos, obrigou-nos a olhar para dentro. E aí, apercebemo-nos de algo fundamental, atravessamos também uma crise de significado. No entanto, é uma crise que pode ser resolvida sem precisarmos de algo externo. A nossa vida é nossa. Só precisamos de nós e de um pincel.
Texto de Afonso Delgado Gonçalves
Afonso é estudante universitário de Medicina e Filosofia e entusiasta de tudo o que implica pensar e detentor de uma curiosidade infindável. Um aspirante wannabe a médico-filósofo.