A vida dos outros

por Rui Cruz,    3 Fevereiro, 2019
A vida dos outros
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Rui Cruz é humorista, stand up comedian e um génio (palavras dele). Escreve coisas que vê e sente e tenta com isso cultivar o pedantismo intelectual que é tão bem visto na comunidade artística.

Há uns tempos, namorava eu com uma miúda mais nova, tive uma discussão horrível por causa do Instagram. Estávamos de férias numa praia fluvial daquelas quase secretas, eu estava a nadar (como estou sempre quando que vejo água com mais de 5 centímetros de profundidade. Aliás, foi por isso é que escolheram o Momoa para o novo Aquaman, é baseado em mim como se pode ver pelas semelhanças físicas.) e ela começou a insistir para que eu saísse da água porque precisava que lhe tirasse fotos. Perguntei porquê e ela respondeu que precisava de actualizar o seu perfil Instagram. Estávamos num dos sítios mais bonitos do país, depois de um ano difícil, de muito stress profissional, de alguns percalços na relação e de vários problemas familiares e pela primeira vez em muito tempo tínhamos a oportunidade de relaxar, recarregar baterias e esquecer um bocado tudo isso, mas a sua necessidade de se manter online não o deixava. Quando discutimos, perguntei-lhe porque é que era imperativo transformar qualquer actividade numa sessão fotográfica e porque é que não podíamos simplesmente apreciar o momento e estarmos descansados, para quê perder meia hora à procura da pose perfeita em vez de aproveitar esse tempo para nadar, ler ou simplesmente ficar deitados a apanhar sol e a ouvir a água a correr e, especialmente, porque é que eu tinha de ser namorado e paparazzo. A sua resposta foi simples “porque quero mostrar aos outros. Toda a gente posta fotos fixes a fazer coisas e nós não”.

 

Porque é que estou a falar disto? Não, não é para dizer mal das minhas ex, para isso tenho o stand up e as sessões de terapia, mas sim porque recentemente vi o “FYRE: the greatest party that never happened” (vejam! Seja este, da Netflix, seja o “FYRE Fraud”, da Hulu). Não conhecia a história, a polémica passou-me completamente ao lado na altura, por isso fiquei em choque ao perceber como tudo aconteceu e o papel que o Instagram teve. Milhares de pessoas compraram bilhetes a preço de ouro para um festival (que não existiu) apenas porque meia dúzia de modelos e influencers postaram nos seus perfis um vídeo promocional, tão vago que tanto podia ser um anuncio de um evento como dos chocolates Bounty, ou então um quadrado laranja. E se muitos eram meninos ricos, outros venderam tudo o que tinham para poderem embarcar nesta aventura de luxo promovida pela rede social apenas para fazerem parte de um evento que fica bem em fotos e que, de uma maneira retorcida, lhes daria uma espécie status social nas redes que ambicionam ter. E aqui, para mim, é que está o grande problema, mais até do que na fraude que foi o evento em si.

 

Há hoje uma necessidade quase física de ter uma vida falsa e perfeita no Instagram, cheia de glamour, de actividades “cool” e de ostentação que me inquieta. E mais me inquieta ainda a necessidade de “fazer inveja” aos outros, principalmente porque muitos dos outros, teoricamente, são teus amigos e não devia ser normal querer causar sentimentos negativos nos teus amigos. E sim, eu sei que parece exagero o que estou a dizer, mas bastou-me uma pesquisa rápida para encontrar várias empresas cujo o negócio é ajudar a criar uma teia de mentiras para a tua vida parecer idílica no Instagram. Empresas como a “Private Jet Studio”, que aluga um jato privado que nunca levanta voo para o pessoal tirar fotos lá dentro e parecer rico; como a LifeFacker, um site que ajuda a criar uma vida falsa perfeita com pacotes de fotos de catálogo com nomes tão giros como “Look at my holiday and cry”, “My sexy girlfriend/boyfriend” ou “Look what I had for lunch”; ou como a Buzzoid, outro site, mas que vende seguidores para te tornares um influencer. A mentira e a necessidade de aprovação transformaram-se num negócio e, pior!, num negócio lucrativo.

 

A verdade é que tudo isto é engraçado, esta obrigação de ter uma vida perfeita que possas esfregar na cara dos outros, mas também preocupante. Há uma geração inteira que hoje cresce na mentira, que quer reconhecimento não por ter feito algo bom, mas por aparentar ter feito algo bom. Uma geração Bolacha de Framboesa, como lhe chamo, porque o pacote é apelativo, bonito e cheio de cor, mas o conteúdo é pífio e, na maioria das vezes, sabe mal. Uma geração que, na sua busca por aprovação e notoriedade no Instagram, se transforma num rebanho, todos iguais e a fazer o mesmo, as mesmas poses nas fotos, as stories em boomerang, os vídeos de playback nas discotecas, porque se alguém fez e teve 1000 likes, tu também vais fazer e ter a mesma “fama”. Mulheres que só se sentem bonitas quando tiram fotos a imitar uma influencer qualquer e têm centenas de gajos a dizerem que as comiam nos comentários e por DM, homens que só se sentem bem sucedidos quando impressionam uma pita com o lifestyle que copiaram de um qualquer rapper famoso com fotos de um charuto e uma garrafa num privado que lhes custou o ordenado mínimo que ganham. A sua vida, por si só, não lhes chega. O reconhecimento dos amigos e parceiros, por si só, não é suficiente. A auto-estima não existe, apenas a validação dos outros.

 

E o pior é que isto já tem um peso tão grande na nossa cultura que chega, inclusivamente, ao mercado de trabalho. Hoje ter um Instagram bonito e com muitas actividades fixes já pesa quando vais procurar trabalho. Porque se segues as modas quer dizer que és atento e te integras, mesmo que as modas sejam absurdas e perigosas, como sair de um carro em andamento para dançar Drake; se tens 20 fotos de viagens és intrépido e mostra espírito aventureiro, mesmo que essas 20 fotos sejam daquela vez que foste a Badajoz em 2016 com a namorada porque és um idiota que não sabe que o aborto já legal e ainda as postas como se tivesse sido ontem; se tens fotos numa canoa com um capacete é porque és activo, mesmo que o tenhas feito para pagar uma aposta e o teu único hobby seja jogar Magic. Até aqui, numa coisa tão importante como encontrar sustento, a aparência começa a contar quase tanto como o conteúdo.

 

Mesmo na minha profissão existe essa ânsia de vender um lifestyle mais do que a comédia em si. Já perdi a conta à quantidade de colegas, agentes e público que me pergunta porque não ponho mais fotos no Instagram. A resposta é sempre a mesma: porque não me apetece, porque não tenho de viver para os outros e porque não tenho nada para mostrar. E é aqui que oiço coisas como “opá, mas tens de fazer isso, inventa coisas! O importante é dar a ideia de…”. E não, não é. Ou melhor, é, mas não devia ser. E atenção, eu não estou a dizer que não o faço também! Porque a verdade é que faço. Porque mesmo eu, que tenho a mania que sou bué diferente e unique, acabo por acusar a pressão e às vezes tentar transmitir uma vida que não tenho, onde como carne maturada amiúde quando na verdade passo semanas a comer iscas, ou que tenho plateias cheias quando muitas vezes actuo para salas a meio gás, ou quando tiro fotos de cartazes e digo “despachem-se que os bilhetes estão a sair tão rápido que mais parecem bebés da Carolina Deslandes” quando na verdade vendi 10. Até eu tenho, por vezes, essa necessidade de criar esta falsa realidade que parece ser essencial para te sentires bem sucedido hoje. E depois pergunto-me porque fico deprimido ou tenho insónias…

 

E é por isso que acho que, actualmente, não vivemos a nossa vida. Não valorizamos sequer o que vivemos. Hoje, vivemos a vida dos outros e só apreciamos o que vivemos quando os outros vivem a nossa. E um dia, quando a depressão se tornar uma doença tão banal como a constipação, talvez percebamos que viver, viver apenas, por ti, para ti e para os teus, é capaz de ser mais importante e recompensador do que ter um Instagram cheio de nada com milhares de seguidores. Ou então não e inventam um filtro novo, até porque com Prozac tudo parece mais bonito.

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