“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha, e a invisibilidade do feminino

por Cátia Vieira,    20 Março, 2017
“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, de Martha Batalha, e a invisibilidade do feminino

O romance A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha, foi inicialmente rejeitado no mercado editorial brasileiro. Porém, no decorrer da Feira de Frankfurt — considerada a mais importante a nível mundial —, a obra foi adquirida instantaneamente por seis editoras internacionais. Ademais, já foi anunciada uma adaptação cinematográfica, que será realizada por Karim Aïnouz, cuja produção iniciará em 2017. Perante tamanha agitação no universo editorial, jornais como a Folha, Estadão e Globo acabaram por atribuir um grande destaque à primeira obra de Martha Batalha. A questão coloca-se de imediato: como puderam rejeitar, em primeira instância, a história de “Eurídice Gusmão, a mulher que poderia ter sido” (Batalha, 2016: 42)?

A autora — numa breve obra de 214 páginas — expõe a condição feminina e o machismo no território brasileiro nos anos 40 e toca em temas como a da imigração portuguesa, através da narração das experiências vivenciais de “Eurídice e Guida [que] foram baseadas na vida das minhas, e das suas avós” (Batalha, 2016: 8).

Numa ação que se desloca alternadamente no tempo, o leitor descobre Eurídice Gusmão, casada com Antenor, mãe de dois filhos, vivendo num Rio de Janeiro provinciano, que se afasta notavelmente do cosmopolitismo atual. A protagonista, submissa ao lar e à família:

“Era uma mulher brilhante. Se lhe dessem cálculos elaborados ela projetaria pontes. Se lhe dessem um laboratório ela inventaria vacinas. Se lhe dessem páginas brancas ela escreveria clássicos. Mas o que lhe deram foram cuecas sujas, que Eurídice lavou muito rápido e muito bem, sentando-se em seguida no sofá, olhando as unhas e pensando no que deveria pensar.” (Batalha, 2016: 12-13)

Eurídice tenta desesperadamente escapar a uma rotina de vazios, encetando um combate por omissão. Assim, entrega-se inteiramente à redação de receitas de culinária ou à costura, começando a vestir todas as mulheres do bairro. Contudo, as vontades masculinas e machistas imperam, devolvendo a protagonista ao marasmo constante.

Porém, contar a história de Eurídice Gusmão é um mero pretexto para nos apresentar os quadros experienciais de outras personagens como Guida Gusmão, Zélia, D. Ana, Das Dores, Eulália, entre outras. Num período em que casar era o único e o grande plano de sobrevivência para as mulheres, esta galeria feminina aproxima-se pela submissão ao poder patriarcal e na abdicação da existência. Se Eurídice Gusmão vegeta ao longo da narrativa, Guida será abusada sexualmente para pagar a medicação do filho e Das Dores terá de presenciar as aventuras sexuais do jovem Afonso para preservar o emprego.

Acompanhada de um humor sagaz e de uma ironia constante, Batalha assinala que nem todas as mulheres nesta história são tristes ou amargas, porque, afinal, algumas encontraram a sorte. Destaquemos o exemplo de Margarida, viúva e feliz, a quem “Deus lhe tomou o marido mas deixou-lhe a pensão, que alívio que não foi o contrário” (Batalha, 2016: 52).

A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, ao abordar a condição feminina do século XX, tratando a violência, o vazio, a solidão, a invisibilidade e a ausência de identidade das mulheres, permite também automaticamente a denúncia do machismo. Vejamos que:

“Antenor não prestava atenção nas coisas da casa. Para ele havia uma linha quase tangível entre os seus domínios e os domínios de Eurídice. Na casa que dividiam Antenor transitava somente pelos espaços que lhe eram reservados, nunca indo além do percurso quarto-banheiro, banheiro-quarto, sofá-mesa de jantar, mesa de jantar-quarto, quarto-banheiro-mesa da copa-hall.” (Batalha, 2016: 57)

Assim, Martha Batalha retrata a autêntica bifurcação entre os universos feminino e masculino vigente na década de 1940. Sobretudo — e através da crítica irónica e mordaz —, este romance é uma espécie de comédia de costumes, fazendo-nos pensar o nosso passado e o nosso presente. Além das temáticas prementes abordadas, A Vida Invisível de Eurídice Gusmão destaca-se por uma linguagem incrivelmente fluída, clara e incisiva, que se mescla com um humor inteligente. Apercebemo-nos de que a obra foi gerada e pensada ao longo de muito tempo e que Martha Batalha escreveu de modo preciso o texto que tanto procurou. Cora Rónai — jornalista, escritora e fotógrafa brasileira — destacou o romance como um dos melhores de 2016. Não só corroboramos a sua afirmação, como esperamos, carregados de ânsia, pelo próximo trabalho de Martha Batalha.

PUB

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados