A vida não é uma tipa porreira
Não estendas a mão ao abismo se tens dedos de cristal, se nem a ti própria sabes resgatar dessa cova para onde a vida te empurrou à traição. Não estavas à espera, pensaste até muito tarde que a vida era uma tipa porreira, só agora percebeste que é uma serpente como a da Bíblia, ou como uma agência de publicidade que te incita a olhar para coisas em que nem tinhas assim tanto interesse.
Tenho a certeza de que sozinha não tinhas reparado, não tinhas visto que aquilo estava mesmo ali à mão. Se não tivesses visto, passavas bem com a vida solitária e pacata no T2 na periferia, a comida de supermercado barata, as idas com os amigos ao fim-de-semana ao centro comercial e ao jardim do bairro. Mas depois de teres visto, estás mais morta do que viva. Depois de lhe teres tocado passaste a sentir como inúteis todas as outras coisas. Foste conhecer aquilo e agora, como uma dependente, já não sabes viver sem isso. Não sabias que eras tão fraquinha, que bastava conheceres aquilo para te ires abaixo. Pressentiste que podia acontecer, que a derrocada podia estalar a qualquer momento, por isso fugiste a tempo para a cova, o teu T2 na periferia, que agora te parece feio e feito para a desgraça de qualquer pessoa.
Fugiste do abismo que te foi mostrado através de uma aplicação no ecrã. A luz dos infernos vai mudando mas é sempre muito atraente. Preferiste a cova do T2 ao abismo que podia entrar por ti adentro. Agora que conheces o que não devias, aprendeste a carregar a cruz de uma certa religiosidade que descobriste recentemente. Deus e o demónio tornaram-se reais de repente.
Nunca tiveste tanto medo, sabes que qualquer um deles te pode esmagar sem aviso. Afinal a vida não é uma tipa porreira. A vida mostrou-te coisas que preferias não ter visto. Que as pessoas não são de confiança, sobretudo quando o tema é aquilo. Aprendeste à tua custa que tens dedos de cristal, ficaram-te com o mindinho logo à partida. Imaginas que se tivesses ficado mais um pouco, os outros dedos também tinham ido para o badagaio. E agora andavas por aí, maneta, a fumar com a mão esquerda à janela da tua cova na periferia.
A vida era uma tipa porreira até teres vivido aquilo, agora já sabes a verdade. Aguenta e alegra-te, pelo menos ficaste com as duas mãos.