“A Vida no Campo”: conquistar o paraíso
Nas cidades é difícil ver as estrelas. O avô de Joel Neto não poderia identificar o “Dragão”, a “Girafa” e o “Sete-Estrelo”. O céu açoriano projectado na sala experimental do Teatro Municipal Joaquim Benite contrastava com o céu encoberto de Almada. Mas a voz inicial de Fernando Alves, jornalista da TSF, mostrou que a audiência já não estava no teatro. Já não era sexta-feira, nem havia chuva ligeira lá fora. Estavam em Dois Caminhos, nos Açores, quando o ouviram sobre o “Sete Estrelo”.
Nesta terra maternal, onde intrépida gente amarrou raízes ao chão, o menino Joel Neto olhou com o avô o céu açoriano para o ouvir sobre o “Sete Estrelo”. Já escritor, recuperou a anciã voz e as memórias de infância para registar ambientes e gente inolvidável. Procurou, também, o silêncio sagrado do quarto dos pais. Foi devido a essa procura que escreveu “Arquipélago”, “Meridiano 28” e o livro que dá nome à peça de teatro que esteve em cena em Almada: “A Vida no Campo”.
Encenada por Luísa Pinto e interpretada por António Durães e Filipa Guedes, “A Vida no Campo” foi escrita a “quatro mãos”. O escritor nascido em Angra do Heroísmo colaborou com a lisboeta Catarina Ferreira de Almeida, tradutora e especialista em Literatura fantástica. A relação conjugal entre ambos não é mero adorno biográfico. A peça é também sobre a aproximação e afastamento de dois seres humanos, complexos e por vezes inacessíveis. As diferenças entre a vida da capital e a da campo não resumem o texto levado à cena. O espectador está perante muito mais do que isso. A impossibilidade de compreensão total entre dois seres humanos que coabitam e se amam, as inseguranças do escritor sobre o já escrito ou sobre o que terá de escrever dão espessura ao texto dramático. Não é o cimento versus o jardim, nem o céu estrelado em oposição ao céu poluído com luz eléctrica. São duas pessoas que tentam ultrapassar os silêncios, os mal-entendidos, a erosão provocada pelo tempo e o debalde propósito de ter um filho. Fazem-no com dificuldade, assentando o ânimo em vitórias, ultrapassando derrotas, dentro daquela velha casa de família. Por vezes, são a antítese, como o campo é da cidade. É um contínuo recomeço.
Em entrevista ao jornal Público, afirmaram: “É um alívio ver os nossos problemas viver no corpo dos outros”.
Numa conjugação entre texto e hipertexto, Fernando Alves narra o já escrito ou por escrever do outro homem, que bem pode ser o próprio autor, interpretado por António Durães. Não são os mesmos lugares, não é o mesmo tempo, mas são os mesmos homens. No fim, os tempos fundem-se quando a actriz Filipa Guedes acompanha, em silêncio, as páginas narradas em simultâneo pelo actor e por “a voz da rádio”.
Dois cães partilham esses espaços e tempos diferentes. Talvez sejam Melville e Jasmim, companhias caninas dos autores, reinventados para esta peça.
Dois dias (26 e 27de Abril) com lotação esgotada para assistir a um belo trabalho de encenação, em que elementos multimédia conjugaram-se com o trabalho dos autores. O texto de Joel Neto e Catarina Ferreira de Almeida complementam com sucesso o livro publicado em 2016.
Da vida para o papel, do papel para o palco. A peça continua a ser representada, agora em casa. Será na Terceira.
“Vida no Campo” terá também novo volume, a sair nos próximos meses. O fim de um caminho abre para um novo a percorrer.
O tempo de agora parece anunciar o fim da fronteira entre campo e cidade, entre hábitos antigos e hábitos tecnológicos. Seja como for, documentos como “A Vida no Campo”, em livro e no palco, registam a riqueza de personagens e ambientes longe da velocidade metropolitana. Como disse a actriz Filipa Guedes, com o seu sotaque memorável, nesta reflexão sobre a pertença e a felicidade: “Ainda estamos no paraíso, amor, ou já fomos para outro lugar?”