A voz passiva nas notícias

por Cronista convidado,    20 Fevereiro, 2023
A voz passiva nas notícias
Fotografia de Micah Hallahan / Unsplash
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Uma desresponsabilização inconsciente do agressor.

Os últimos meses não têm sido fáceis para vítimas de violência sexual. Desde julgamentos transformados em reality TV, que serviram de entretenimento e justificação para milhares de pessoas gozarem com os relatos de uma vítima de violência sexual, ao agora novo (que não é novo) escândalo de abusos sexuais na Igreja Católica Portuguesa — 4.815 casos nos últimos 72 anos trazidos à luz pelo relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica. Com tudo isto, tenho prestado ainda mais atenção às notícias.

Não é de agora que saem notícias nos principais jornais do país sobre casos de Violência Contra as Mulheres. E olhos menos atentos podem não ver um padrão aí, mas ele está lá. No dia 8 de fevereiro saiu uma notícia no Diário de Notícias; no título podia ler-se “Mulher morre na sequência de agressões do marido em Lisboa”. No mesmo dia, sobre o mesmo caso, sai uma outra notícia no Jornal de Notícias em que se lê “Mulher morre após ser violentamente agredida pelo marido na Ameixoeira”.  A 5 de outubro de 2022, novamente no Jornal de Notícias, sai uma notícia sobre o assassinato de uma mulher pelo ex-companheiro. O título? “Mulher morta em frente aos filhos menores”. Na RTP Notícias, a 19 de setembro desse ano: “Odivelas. Mulher assassinada pelo companheiro no meio da rua”. E, claro, podia continuar; não requer assim tanta pesquisa.

Fui aluna de Línguas e a nossa fascina-me desde que me lembro, em especial a forma como as mensagens podem ser transmitidas e interpretadas de formas diferentes, de acordo com a vontade do emissor e do recetor, respetivamente.

Então e qual é o padrão nas ditas notícias? O uso da voz passiva nas headlines — ou, quando não é a passiva, é a voz ativa usada no mesmo sentido, com o particípio passado ou com a ênfase na vítima. Acredito não ser necessário esclarecer como funciona a voz passiva, mas o objetivo é, geralmente, colocar o foco da ação no objeto, transformando-o, assim, no sujeito da mesma. Ou seja (e usando um dos casos acima mencionados): em vez de escrever “Homem assassina companheira no meio da rua” — colocando o sujeito (e foco) da ação no perpetrador, escreve-se “Mulher assassinada pelo companheiro no meio da rua” — colocando o sujeito (e, novamente, o foco) da ação na vítima. No caso da voz ativa usada da mesma maneira que a passiva, percebemos que o foco é a vítima que morre, não o agressor que mata.

Isto não afetaria em nada o leitor, não fosse a linguagem usada fundamental na perceção que temos dos acontecimentos que nos rodeiam, em especial quando o assunto envolve violência, uma vítima e um agressor. Algo a notar no assunto é a forma como na voz passiva, o autor das ações é passível de ser removido da frase; assim, temos “Mulher assassinada em frente aos filhos menores”. Por quem? Aí está: o complemento agente da passiva (que seria “pelo ex-companheiro”) não está presente na headline, e, tendo em conta que as notícias online dificilmente são lidas na íntegra, a ideia de um autor é varrida de cena.

O que não faltam são estudos, notícias, relatórios e posts nas redes sociais sobre como as mulheres são a maioria das vítimas de violência sexual e doméstica. E não quero ser mal interpretada; fico feliz que existam. No entanto, só recentemente se começou a olhar “com olhos de ver” para o outro lado da questão: quem constitui a maioria dos agressores sexuais e domésticos?

Já em 1995, Henley, Miller e Beazley concluíam que notícias sobre violência sexual em jornais são frequentemente escritas na voz passiva e sem agente (autor da ação) e que, quando assim é, a atitude perante as vítimas era mais negativa, com um menosprezo do sofrimento que lhes foi causado e uma atenuação da responsabilidade do agressor; estas consequências podiam derivar, em parte, do foco no papel que o dito “objeto” tem em frases passivas — objeto esse que, aí, toma o lugar de sujeito.

Acho importante afirmar que, tal como as autoras, não acredito que em todos os casos isto seja intencional; a forma como escrevemos e noticiamos eventos vem, em grande parte, do ambiente que nos rodeia e dos aspetos culturais que, querendo ou não, moldam a nossa perceção do mundo. A cultura da violação — resultante da normalização e quase banalização da violência sexual em todo o lado (de videoclips a videojogos, filmes, séries e toda a cultura pop em geral) — molda o nosso pensamento, qualquer que seja o nosso género. Mulheres ou pessoas a quem foi atribuído o género feminino à nascença têm, inclusive, grandes níveis de misoginia internalizada, que devem ser desconstruídos e nunca ignorados. Assim sendo, enquanto lutamos pelo fim da violência de género como um todo, acredito ser fundamental mudarmos coisas pequenas que, indiretamente, afetam a forma como vemos os acontecimentos, e a linguagem é uma das mais significativas. A desresponsabilização de género e a falta de atenção à forma como passamos as mensagens e como serão inconscientemente interpretadas pelo público devem ser tidas em maior consideração quando editores reveem notícias e artigos sobre casos que demonstram, efetivamente, padrões de género — que quando ignorados ou diminuídos podem ser, eventualmente, fatais.

Crónica de Joana Fernandes.
Licenciada em Línguas e Relações Empresariais pela Universidade de Aveiro, ativista feminista e pelos sobreviventes de violência sexual.

Para denunciar ou pedir apoio em caso de violação, pode contactar os seguintes números telefónicos:

112 (Número Europeu de Emergência)  

114 (Linha Nacional de Emergência Social; caso não seja seguro regressar a casa e não tenha onde ficar)

116 006 (Linha de Apoio à Vítima)

910846589 (Linha de apoio da Associação Quebrar o Silêncio, que presta apoio especializado a homens sobreviventes de violência e abuso sexual)

Pode ainda dirigir-se à esquadra da PSP, posto da GNR ou piquete da PJ mais próximo. É recomendada a procura de ajuda psicológica ou psiquiátrica.

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