Abre teus olhos, Flamignon

por Comunidade Cultura e Arte,    23 Agosto, 2018
Abre teus olhos, Flamignon
Fotografia de Herbert List
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– Abre teus olhos, Flamignon. É teu pai quem te fala. Que é feito de ti, meu rapaz, que sonhos estranhos andas a ter? Abre teus olhos e vê quem está à tua frente. Acaso não te provocam curiosidade os homens com que te cruzas? Porque te diriges aos mortos, aos que não são? Não dialogues apenas com o que imaginas, meu filho, a solidão pode ser dolorosa. Agora abre teus olhos, Flamignon, e fala.

Flamignon está num bar ali para os lados da Graça. A música não é desagradável, tocada por mãos amadoras, que tinham vindo por cerveja ou aguardente, e que acabaram segurando uma viola, vertendo o que o corpo guarda em cordas pisadas e beliscadas com cuidado. Ficamos a pensar que tudo em Lisboa é pequeno, mas este bar, um pouco à semelhança do café do outro dia, é minúsculo: uma parede cheia de instrumentos musicais, as outras com fotografias e desenhos emoldurados, umas poucas mesas, a porta fechada e o ar cheio de um calor tenso, atento. Flamignon está só. É a primeira vez que visita este lugar. Abre os olhos, que fechou para ouvir o dedilhar da viola, dá um gole num copo de aguardente de cana e transpira um pouco. Quem toca, termina. Os outros esfregam as mãos, em substituição dos aplausos – há a impressão de clandestinidade. Toda uma pequena sociedade clandestina, que foi nascendo dentro destas paredes: como faróis ou monumentos, há gente que parece aguentar tudo isto aos ombros, e quem é amparado reconhece estas figuras com rostos cansados e marcados por uma espécie de dor com admiração. Neste preciso momento, uma mulher entra no bar. As atenções voltam-se para ela. Cumprimenta, cheia de um charme antigo, todos os que estão. O cabelo apanhado, um vestido velho. Magra, morena e cheia de rugas. Magnetizante, senta-se num banco ao lado dos instrumentos musicais; dão-lhe um copo de aguardente, que agradece com solenidade. Pergunta quem está a tocar, e aponta para a viola que é agarrada imediatamente por uma rapariga incapaz de tirar os olhos da figura que engole, num trago, a aguardente.

– Minha querida, Todos me dicen el negro

E a rapariga acenou, parecia já adivinhar. Começou. Flamignon caiu uma vez mais na tentação de se deixar levar pelo que a música inspira. Mas resistiu, bebeu um gole de aguardente, transpirou um pouco, e olhou em volta. O ar de encanto das pessoas que ouvem o som da viola, a mulher que olha directamente para ele, e sem qualquer movimento parece penetrar um qualquer estado que lhe transforma as feições. Com um sorriso, ela olha para o chão. É, aos olhos de Flamignon, um ser estranho, uma sombra. Na sua transformação parece levar todos com ela, a própria sala. A viola hesita, e a mulher canta. E quando a mulher canta. Repetiu, numa espécie de choro o verso com que tinha pedido à rapariga que tocasse, seguiu com a voz rouca, o hálito, imagina-o Flamignon, de aguardente. E é como se um corpo inteiro viesse contra nós. A tensão na sala transforma-se numa incontrolável comoção, e as cadeiras choram, gemem, falam a mesma língua que ela. Os homem, seus olhos brilhantes. As mulheres, seus sorrisos cúmplices. A cantora, alheia à clandestinidade – que se lixem os que nos apanharem aqui, comovidos num campo de lírios –, ela grita.  A viola grita também. E já os pés batem no chão, as mãos nas mesas, os corpos não se seguram. Yo te soñaba dormida, llorona. Que as flores que estão no cemitério, quando as move o vento, parece que choram. E o vento que se levantou aqui é triste, um pranto. Por mais que tente Flamignon não consegue ficar na sala, já a sua cabeça viaja de mão dada com as palavras. Él que no sabe de amores, llorona, no sabe lo que es martirio. Talvez o pai de Flamignon nunca tenha ouvido esta canção, ou canção irmã. Talvez ele não soubesse que os mortos nos alimentam a vida, que o que não é tantas vezes nos comove. E, parecendo adivinhar em que pensa Flamignon, a mulher grita Qué más quieres?,sim, que mais? O que vê, quando abre os olhos, o cego? Que fantásticas figuras, que cândidos olhares, que impossíveis paisagens?

– Meu querido filho.

– Pai.

– Não resististe.

– Não consegui.

– E tua mãe?

– Continua na mesma.

– Na mesma…

– Tem saudades.

– Devias ser tu a segurá-la.

– Uma estranha membrana nos separa.

– Mais estranha que esta?

– Mais difícil de furar.

– Sente-se só.

– E eu também.

– Terás tempo para isso, Flamignon, humildemente partilha o teu sofrimento. E como é possível que te sintas só quando estamos aqui sentados, à beira-rio? Não encontras a graça no vôo rasante dos pássaros que aqui vêm só para beber água? Repara como o vento parece dar vida às árvores. Este lugar é tua infância, meu filho. Olha a colina, vem lá tua mãe. Está tão diferente. Esperamos?

– Sim.

– Na verdade, invejo esta tua capacidade, meu filho. Que impressionante, surpreendente memória. E não me importo de prolongar quem um dia foi teu pai, mas não substituas tua mãe por isto.

– Não sei se consigo resistir a visitar-te com frequência.

– Não tens que resistir… Sabe que as visitas são tanta quando aqui vens, como quando cuidas de tua mãe. Olha. Ela chega. Fala-lhe.

Um toque ligeiro no ombro traz Flamignon de volta ao bar. É a cantora.

– Vejo que a canção o comoveu.

– Muito, sim.

– Não me quer fazer companhia até casa? É perigoso, para mim, caminhar na escuridão. Não que me metam medo malfeitores, senão que não conheço todos os degraus desta cidade.

– Claro. Com gosto.

Saíram do bar, começaram a subir a rua e, sem dizer uma palavra, chegaram a São Vicente de Fora. A mulher apoiava-se no braço de Flamignon, a ruas estavam desertas. Pararam em frente às escadas que dão acesso ao interior da igreja. A mulher segurou os ombros de Flamignon, voltou-o para si e olhou-o nos olhos. Depois de um instante falou.

– Sabe, meu querido, esses seus olhos são raros. Reparei logo. O que viu no bar?

– O que vi?

– Para onde o levou a canção?

– Para junto de meu pai.

– E onde é isso?

– Vai sendo. Hoje, à beira-rio.

– E porque se põe um jovem a imaginar o pai?

– Último recurso, minha senhora.

Uma gaivota pousou ao lado deles. Comeu restos de fast-food que tinham ficado abandonados no chão.

– Último recurso…

– Não tenho outra forma de o ver.

– Eu percebi, meu filho, não tem que me explicar. Mas não fique refém do último recurso.

– Não pense que não fui sensível ao que nos deu.

– Eu sei, eu sei. Bem o vi lutar com o seu olhar, resistir-lhe.

– Tão depressa não esquecerei esta noite.

– Esperemos que não. Faça dela qualquer coisa. Uma canção, quem sabe. Se o fizer dê-ma. Quero ser eu a dar-lhe voz. Eu fico aqui. Muito obrigado pela companhia, meu jovem. Fico contente por ter levado a ver seu pai, outro dia me contará como são as visitas a sua mãe.

A mulher afastou-se. Flamignon ficou só. Sentou-se nos degraus, amanhã acordará muito cedo, como hoje tinha acordado. Terá que preparar, abrir o quiosque. Pensa durante um bocado na sua colega, vê com clareza as suas madeixas roxas, as unhas cuidadas, a mochila cheia de fotocópias para a faculdade. O perfume da colega, sente-o Flamignon com intensidade neste momento. Pensa também na mãe, que já deve estar a dormir. Amanhã fará qualquer coisa, talvez lhe compre um livro durante a tarde, lerão o primeiro capítulo em voz alta. Amanhã tem que acordar cedo, repete-o a si-mesmo, mas não consegue levantar-se. Só mais um pouco aqui. Ao seu lado, a gaivota vai perdendo receios. Aproxima-se, e Flamignonpoderia jurar que ela o olha, abre o bico e diz:

– Bem sei, caro amigo, o que sente. Também sempre me senti bem aqui. Tão bem, que um dia não me apeteceu voltar para casa, pus-me ali em cima e fiquei quieto durante uns dias. Agora, acontece que perdi o caminho. Mesmo que me apeteça – a gaivota solta uma gargalhada descontrolada, tenta continuar – mesmo que me apeteça, não sei o caminho para casa. E cá estou eu… A aproveitar-me da caridade, ou do desleixo dos que passam aqui. Sim, desleixo, porque não acredito que eles pensem em mim quando abandonam o BigMac nas escadinhas da igreja. Vá lá… Vá lá que hoje ainda não passaram os homens do lixo. Ah, meu amigo. Nós entendemo-nos, não é verdade? Eu vejo-o, consigo ler isso na sua postura, o meu amigo é cá dos meus. Não tenho razão? Ah-ah! E, diga-me uma coisa, não se arranja nada para petiscar? Estou cá com uma fome…

Quem dera a Flamignon a aguardente que o faz transpirar, o ardor para o trazer à realidade. A gaivota fala tão bem como a cantora. Talvez seja tarde. Talvez deva pensar em regressar. Talvez, se pensar bem, esteja já na sua cama, e tudo isto não passa de um sonho. O que é certo, e isso não o pode sonhar Flamignon, é que amanhã acordará cedo no mundo real.

Texto de Guilherme Gomes

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