Abrir fronteiras

por Davide Pinheiro,    1 Fevereiro, 2021
Abrir fronteiras
Dino D’Santiago no A Colors Show
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No dia seguinte às presidenciais, a portuguesa descendente de caboverdianos Nenny revelou o novo single Tequilla no canal de YouTube Colors. É “apenas” a segunda artista portuguesa, depois de Dino D’Santiago — a terceira se incluirmos a caboverdiana com fortes ligações a Portugal Mayra Andrade — a voar nesta plataforma de referência de descentralização da música popular, que semanalmente projecta nomes emergentes de culturas periféricas como a África Central, o Brasil ou a França.

O meio escolhido é um marco pela visibilidade e influência de um canal por onde já passaram Alicia Keys, Common, Moses Sumney, Sudan Archives, a catalã Rosalía, a francesa Christine and the Queens, as nigerianas Rema e Tiwa Savage, a brasileira Luedji Luna e a jamaicana Koffee, entre tantos outros. Sim, há nomes americanos representados, mas cada vez menos. E a agenda do Colors não é racial mas a prevalência recai sobre a cultura negra emergente. Muitos dos que por ali passam podem não ser ainda reconhecidos globalmente, mas são estandartes dos seus territórios e trazem comunidades locais cada vez mais numerosas, que se relacionam sobretudo com o ritmo. O corpo une aquilo que as barreiras culturais separam.

Há um padrão identitário entre Nenny e Dino D’Santiago. Ambos descendem de caboverdianos mas são portugueses e fazem música portuguesa do mundo com raízes na diáspora. Se recuarmos vinte anos no tempo, a uma época de fenómenos como os Silence 4 e os The Gift, criou-se a ilusão de que cantar em inglês era o passaporte de exportação. A essa fantasia vinha associado um complexo de inferioridade que passava por fazer crer que a música portuguesa era inferior à música de raiz anglo-saxonica apenas por ser portuguesa. Como se a criatividade pudesse ser limitada por uma bússola. É verdade que nesse tempo pré-Internet o acesso a informação era mais restrito. Que os orçamentos, mesmo em tempo de bonança da indústria, eram substancialmente inferiores aos praticados em países mais poderosos. E que estes dois factores combinados com a geografia afastavam ainda mais Portugal dos centros de decisão, mas no fundo essas máscaras apenas encobriam uma vergonha de ser português. Um “É Português, Não Gosto” (delicioso título de um álbum da Stealing Orchestra) contrarespondido por Mão Morta, Sérgio Godinho, Da Weasel, Clã, Ornatos Violeta ou Cool Hipnoise, entre tantos outros, é verdade, mas nesse tempo o mito criou uma escola de pensamento. Para inglês ver, ouvir e rejeitar.

Se olharmos para a história da música portuguesa, os maiores casos de exportação são fadistas como Amália Rodrigues, Carlos do Carmo, Mariza ou Ana Moura ou o fado dos Madredeus, o kuduro progressivo dos Buraka Som Sistema e os Moonspell, autênticas toupeiras no nicho do metal, um género que também não valoriza o cartão de cidadão como a pop. À excepção destes, a identidade local sempre foi o VISA desbloqueador de fronteiras. E é isso que Dino D’Santiago, Nenny ou Mayra Andrade, que viu abrir-se o canal da Nova Lisboa depois de trabalhar com Branko em Reserva Pra Dois, têm para oferecer. Uma nova portugalidade mais franca e transversal para com a representatividade cultural, social e racial.

A geração da Flor Caveira, Samuel Úria, B Fachada, Deolinda, Diabo na Cruz, Pontos Negros, Golpes e Capitães da Areia reconciliou o país com a memória da sua música. Slow J, Capicua e demais democratizaram o hip-hop. Buraka Som Sistema, a trupe da Príncipe e tantos outros desconstruíram preconceitos raciais relacionados com a comum marginalização da música das periferias. Este Portugal, de Dino D’Santiago, Julinho KSD, Branko, Pedro, Pedro Mafama, Eu.Clides, Sara Tavares, Scúru Fitchádu, Nídia ou Tristany, que pode ser alargado a Ana Moura, Conan Osiris, Filipe Sambado ou David Bruno tem um pouco disso tudo. Colhe da sua terra, atravessa a sociedade de alto a baixo, do Porto a Quarteira, e é um tampão a avanços xenófobos e racistas, que a determinada altura pareciam caminhar para a erradicação na sociedade portuguesa.

Não deixa de ser irónica a estreia do novo single de Nenny no dia de todas as discussões sobre a raiz do mal. Por vezes, Portugal parece uma guerra civil entre  o país do “branco com preto, geração de ouro” e o país em que se mata Bruno Candé a sangue frio. Estamos a passar por um período terrível. Aquilo que dávamos por adquirido é posto em causa. A saúde, a liberdade, o convívio, o beijo, o abraço e o respeito pela diferença. Mas também sabemos que a música popular portuguesa com maior potencial de exportação é um espelho da diversidade cultural do país. E que muitos dos protagonistas têm consciência dos estigmas mas tentam superá-los através da criação. Seria bem pior sem eles. Esta(s) música(s) têm feito mais pela inclusão do que quase todos os discursos políticos e campanhas eleitorais. E enquanto se faziam projecções a partir do resultado eleitoral, a Nenny de “vou quando sinto, só sigo o instinto” viajava em executiva. E esse voo, esse movimento, essa corrente não pode ser parada.

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