Abuso sexual: a prevenção passa por uma nova abordagem

por Luana Alves Farinha,    10 Janeiro, 2023
Abuso sexual: a prevenção passa por uma nova abordagem
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Aviso de conteúdo: violação.

“Hoje em dia até tenho medo de estar com uma mulher. Ainda sou acusado de violação”, desabafa o indivíduo do sexo masculino com um ar sofrido. Os amigos concordam, quase como se de uma roleta russa se tratasse. 

Quando tenho a infelicidade de presenciar afirmações do género, tento colocar-me na pele do sexo oposto. Em primeiro lugar, por nunca ter ouvido semelhante afirmação por parte de uma mulher, e em segundo lugar porque não adianta tentar contornar a verdade. Os dados estatísticos não mentem, e o abuso sexual é, por inúmeras razões, um problema de género.

Como qualquer problema, a sua resolução passa por chegar à origem do mesmo. Poderíamos afirmar que a origem da cultura da violação está na sociedade patriarcal, e que esta remonta a tempos imemoriais — e não estaríamos errados. Mas nem precisamos de ir tão longe. Durante os anos 90, nos Estados Unidos da América, o advogado de um homem que fosse acusado pela sua mulher de violação marital, tinha nas suas mãos uma defesa muito simples: bastava-lhe arguir a impossibilidade de se tratar de uma violação. “Matrimónio” e “violação” eram termos que não surgiam na mesma frase. O que era o casamento se não uma forma legal de obter um controlo ad eternum sobre o corpo da mulher?

Sendo certo que a análise e a desconstrução de séculos de opressão tornar-se-ia demasiado complexa para ser uma proposta adequada à resolução do nosso problema, proponho algo tão elementar como a escassez de informação que nos é transmitida acerca do tema em apreço. 

O abuso sexual é retratado de forma grosseiramente simples. Nas escolas, nos (poucos) dias reservados à educação sexual, era-nos dito que a violação era o que acontecia quando, sozinhas à noite, numa rua escura e pouco movimentada, um desconhecido aparecia e violentamente nos obrigava a praticar relações sexuais com ele. Tanto as palavras como as imagens e vídeos que nos eram apresentados para fins educacionais padeciam do mesmo problema: ambas pintavam algo tão complexo de uma forma demasiado simples, contribuindo assim para a criação de estereótipos, que mais não são do que uma amostra redutora de uma realidade complexa. Todo o cenário é de uma violência física extrema. Ouvem-se gritos e súplicas. A vítima indefesa debate-se perante um agressor implacável. É com esta imagem que ficamos, e é com ela crescemos. E torna-se para nós impensável que possamos ser vítimas de um crime destes em qualquer circunstância que se desvie minimamente do paradigma que tão cedo nos é apresentado como o único correspondente à violação.  

Ninguém nos prepara para que nos consigamos aperceber de que estamos a ser vítimas de abuso sexual no conforto da nossa própria cama, e nos braços da pessoa que diz amar-nos incondicionalmente. Ninguém nos prepara, em primeiro lugar, porque tal não é suposto. Mas a verdade é que muito poucas coisas funcionam como é realmente suposto, e como tal urge proceder à sensibilização coletiva do que é, realmente, uma relação sexual consentida.

Para explicar o que é o consentimento, podemos começar por enunciar aquilo que, efetivamente, não o é. O namoro não é consentimento. Pasme-se o advogado que, sem grande dificuldade, defendeu o tal fulano na década de 90 — o casamento não é consentimento. A ausência de protesto não é consentimento. A mera anuência não é consentimento. Não, quem cala não consente. O silêncio não é consentimento. Só o consentimento é consentimento. E este não corresponde a uma uma realidade estanque. Aliás, o mais importante a ter em consideração no que respeita ao consentimento é o facto de este poder ser revogado a qualquer momento. E se o comportamento de uma das partes não se alterar em função de uma revogação do consentimento da outra parte, então estamos perante uma violação. Usem-se os termos corretos. 

O art. 164 é bastante claro, pelo que o problema não está na lei (apesar da justiça e de todo o procedimento pós-denúncia ser outra história). O problema está na sua interpretação — é esta que precisamos de trabalhar. “Constranger”. A prática de qualquer ato que não seja seguida de um consciente, claro e entusiástico “sim!” é subsumível ao termo empregue no artigo mencionado.   

Em conversas com amigas, é devastadoramente frequente ouvir desabafos como “não me apetecia, mas lá acabei por ceder”. Sinto um nó no estômago, e penso como seria viver num mundo onde a cultura da violação não existisse. “O feminismo hoje em dia é uma parvoíce”, dizem uns. “As mulheres já têm os mesmos direitos que os homens. O que é que reivindicam agora?”, perguntam outros. Errado. A nossa libertação requer uma sensibilização coletiva no que ao consentimento diz respeito. Enquanto a nossa dor for encarada com trivialidade e o nosso “não” for encarado como um desafio, o nosso corpo continuará sem nos pertencer, e nós continuaremos subjugadas a uma dominação milenar. 

Kumi Naidoo, ativista sul-africano, di-lo de forma clara: “A simples verdade é que o sexo sem consentimento é violação. A falha em reconhecer isto na legislação deixa as mulheres expostas a violência sexual e alimenta uma perigosa cultura de culpabilização das vítimas e uma impunidade reforçada por mitos e estereótipos generalizados na sociedade (…)”.

A luta contra a cultura da violação, perpetuada por uma sociedade assente num ideário patriarcal, requer sensibilização coletiva. É preciso falar sobre consentimento. É preciso ensiná-lo nas escolas e falar sobre ele nas faculdades. É preciso desconstruí-lo. É preciso desmistificar a imagem que existe da violação, e que mora na cabeça de tantos portugueses. É preciso explicar que o abuso sexual não é preto no branco, e que qualquer situação minimamente cinzenta é motivo de preocupação. É preciso proteger não só as crianças e os adolescentes, mas também os adultos e as pessoas de idade mais avançada. É preciso proteger — independentemente da idade e do género. É preciso mudar urgentemente a forma como abordamos o abuso sexual para incluir toda e qualquer situação em que o consentimento não é respeitado. 

De acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna, o crime de violação, previsto e punido pelo art. 164 do Código Penal Português, aumentou em 26% no ano de 2021, o que corresponde a mais 82 denúncias face ao ano de 2020, um ano em que o número de denúncias já foi preocupante. Imaginar os dados que teríamos se as pessoas tivessem mais informação a seu dispor é alarmante — mas necessário, para que pudéssemos ter uma representação o mais fiel possível do quadro de violência sexual no nosso País. 

Basta de sofrer em silêncio e sem perceber o porquê. 

Basta de sofrer. Basta de silêncio. E basta de não perceber o porquê. A informação é uma arma. Usemo-la, e façamo-lo corretamente.

Para denunciar um caso de violação, pode contactar os seguintes números telefónicos: 
112 (Número Europeu de Emergência)  


114 (Linha Nacional de Emergência Social; caso não seja seguro regressar a casa e não tenha onde ficar) 

213587900 (APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima) 
910846589 (Linha de apoio da Associação Quebrar o Silêncio, que presta apoio especializado a homens sobreviventes de violência e abuso sexual)

Pode ainda dirigir-se à esquadra da PSP, posto da GNR ou piquete da PJ mais próximo. É recomendada a procura de ajuda psicológica ou psiquiátrica.

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