Aby Warburg e os seus estudos sobre a arte renascentista

por Lucas Brandão,    19 Dezembro, 2017
Aby Warburg e os seus estudos sobre a arte renascentista
Aby Warburg (da esquerda para a direita)
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Aby Warburg legitimou e diferenciou a História da Arte, em relação a todo o enquadramento da História como área do saber. Num percurso de profícua investigação, e mesmo sendo alemão, interessou-se pelo Renascimento, que abalou a atual Itália, como poucos, desdobrando-se pelo mundo clássico e pelas suas representações e transmissões. Nas profundezas dos seus interesses, reconheceu a ampla envolvência e autonomia desta área da História, embora nunca se descaindo no corte de um laço que lhe é inerente e proeminente.

Aby Moritz Warburg nasceu a 13 de junho de 1866, em Hamburgo, cidade germânica onde viria a falecer, no dia 26 de outubro de 1929. As origens do jovem pertenciam a uma família abastada de banqueiros germano-judaicos. Primeiro de sete filhos, tornou-se interessado por literatura e história desde bem jovem, mesmo vivendo e crescendo num ambiente bastante conservador, e tendo sido vitimado pela tifo bem cedo. Dotado de um temperamento bastante insurgente, frustrava-se com os rotinados rituais familiares, e mostrava-se adverso aos caminhos que os seus parentes lhe proporcionavam. Como irmão mais velho, abdicou do direito de herdar a direção da empresa familiar, passando-o para o irmão que havia nascido imediatamente depois, e seguiu os seus estudos na sua vocação de História da Arte.

Foi em 1886 que iniciou, assim, o seu estudo intensivo em História, Arqueologia e História da Arte, em Bona, aprendendo com nomes célebres, como Hermann Usener (história da religião), Karl Lamprecht (história da cultura) e Carl Justi (história da arte). A dissertação seria realizada em Estrasburgo, França, após passar por Munique, e seria subordinada ao tema das pinturas “O Nascimento de Vénus” e “Primavera”, de Sandro Botticelli, sob a orientação de Hubert Janitschek, concluindo-a em 1892. Um trabalho que o levaria, desde cedo, a motivar-se pelo cruzamento antropológico e psicológico no estudo da arte.

Fotografia de Rudolf Frieling, representativa do Atlas Mnemosyne (1924).

Este trabalho levá-lo-ia a Florença, a uma investigação profunda no Kunsthistorisches Institut in Florenz, instituto de pesquisa científica nos âmbitos da História da Arte e da Arquitetura. Aqui, interessou-se em aplicar os métodos das ciências naturais, a antropologia e a psicologia à arte, e fundou a iconografia analítica, que instituiu a novidade do escrutínio do conteúdo associado às obras de arte, nomeadamente às pinturas; e a iconologia, voltada para o estudo dos contextos e dos temas associados a uma peça artística, sem descartar as relações intrínsecas e extrínsecas inerentes a cada uma.

Após o doutoramento, esteve na Universidade de Berlim, na sua Faculdade de Medicina, onde estudou psicologia durante dois semestres. Entretanto, viaja para os Estados Unidos, onde viria a casar, no ano de 1895, e onde viajaria pela zona ocidental do país, chegando a viver com povos nativos, como os Hopi e os Zuni. Foi neste contexto que estudou ao lado de antropólogos norte-americanos, e onde privou com as suas perceções sobre a cultura destes organismos coletivos. Aqui, fascinou-se com a arte pintada e construída pelos Hopi, como as pinturas e os vasilhames, para além das danças e dos rituais. A vida supérflua que Nova Iorque, cidade onde se casou, lhe proporcionava nunca o agradou tanto quanto esta, entre as heranças ocidentais e renascentistas na construção cultural destes povos.

No entanto, e já em 1897, o alemão voltaria a casar-se, desta feita com a pintora e escultora Mary Hertz, com quem teve três filhos, e com quem foi viver para Florença, no ano seguinte. O casal criou um núcleo social cosmopolita, composto pelo escultor Adolf von Hildebrand, pelo historiador de arte belga Jacques Mesnil, pelo arquiteto inglês Herbert Horne, e pela autora Isolde Kurz. Os estudos e ensaios de Warburg, imbuídos das profundezas artísticas do Renascimento, viram-se especialmente críticos da vulgar idealização do individualismo direcionado a este movimento artístico. Para além destes aspetos, investiram no aprofundamento da perceção das condições de vida e das atividades comerciais desse tempo, à luz do mecenato existente, assim como da própria transição da Idade Média até aos primórdios renascentistas.

Desta forma, envolveu-se numa tessitura que enquadrava o papel da ciência e da pseudociência na representação visual do conhecimento e da arte. Assim, aprofundou a astrologia e o zodíaco, consultando livros onde o próprio corpo humano era retratado, e procurou entender as convenções renascentistas, que, no seu olhar, visavam gerar emoção e simpatia. Para si, a Idade Média transmitia a base de valores para a transição que o Renascimento possibilitava conferir ao mundo, na revalorização da Antiguidade Clássica, que assumia um papel determinante nos seus olhos. Assim, o estudo simbológico da arte nunca perdeu relevância, sustentado na evocação do pathos por parte das formas pictóricas transmitidas por cada pintura. Porém, de todas as representações gráficas se fez o seu objeto de trabalho, incluindo ilustrações, selos, cartas e fotografias, que complementavam o farto e vário leque de fontes de informação para a modelação das suas posições.

Destes estudos, resultaram as palestras que deu, em 1899, pela Alemanha, sobre a figura de Leonardo da Vinci, e o seu estudo sobre o bestiário medieval, para além das teorias da proporção advindas do arquiteto romano Vitrúvio. Também se desencadeou, deste período, o interesse pela relação entre o pintor Sandro Botticelli com a Antiguidade Clássica, evidente na indumentária, em especial na feminina, na representação das ninfas. A curiosidade pelo estudo da identidade feminina expressa-se com amplitude na figura da Virgem, representada amiúde nas pinturas renascentistas; e que surge como nuclear na discussão da emancipação dos códigos de vestuário da mulher perante os preceitos de propriedade estabelecidos então.

De regresso a Hamburgo, Warburg continuou a dar palestras sobre o que havia estudado e descortinado, embora sem nunca exercer a profissão de docente. No entanto, tornou-se um dos membros da direção do Museu de Etnologia da cidade, para além de apoiar a fundação da primeira universidade de Hamburgo, que viria a abrir em 1919, e onde passou a dar aulas, para além de atuar como investigador. Com uma literatura extensa, que advinha das suas viagens e estudos, contratou historiadores de arte, como Wihelm Waeztoldt e Fritz Saxl, para gerir a sua biblioteca de investigação. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, debruçou-se pelo estudo da literatura propagandística, que incluía pósteres do pintor Albrecht Dürer e de Martinho Lutero.

Entretanto, de saúde mental frágil, confrontou-se com uma depressão, para além de deter sintomas de esquizofrenia, que o levaram a ser hospitalizado numa clínica neurológica na Suíça. Porém, estes seriam contrariados com a sua perceção da importância do seu trabalho, sentindo-se motivado para reforçar o seu contributo para a História da Arte. Saindo dessa instituição em 1924, continuaria empenhado em organizar alguns seminários em locais mais recatados, como a sua biblioteca. Cinco anos depois, no dia 26 de outubro de 1929, Warburg partiria, na cidade que o viu nascer, após sofrer um ataque cardíaco. Antes de partir, legaria a sua biblioteca aos historiadores de arte da sua confiança, que a viriam a transportar para Londres, perante o antissemitismo nazi, no período da II Guerra Mundial.

Foi neste período, que distou da sua alta hospitalar até à sua morte, que iniciou a composição de uma espécie de atlas pictórico, designado por Mnemosyne. Este trabalho consiste em quarenta painéis de madeira cobertos por pano preto, no qual se encontram mais de mil fotografias de livros, revistas e jornais organizados em catorze temas. Estes são as coordenadas da memória, astrologia e mitologia, modelos arqueológicos, migrações dos deuses antigos, veículos da tradição, erupção da Antiguidade, fórmulas dionisíacas das emoções, Nike e Fortuna, das Musas a Manet, Dürer: os deuses vão para norte, a era de Neptuno, “art officiel” e o barroco, reemergência da Antiguidade, e a tradição clássica na atualidade.

Sem quaisquer legendas, o objetivo era transmitir as emoções que havia sentido no seu estudo, tanto de paixão como de dor, passando pela própria confusão, induzida, também esta, pela precoce morte do historiador, em 1929. Para além disso, queria problematizar o papel da memória na civilização, tentando estabelecer relações entre as partes representadas, sobrepondo, por exemplo, o pathos à astrologia e aos valores do sacrifício e da redenção. Este trabalho encontra-se agora em livro, lançado em 1998, e reflete um método de estudo e de análise, não só da pintura, mas das demais artes visuais.

Este foi o legado de Aby Warburg, um historiador que acalentou o rumo da História da Arte para a sua multidisciplinaridade, caminhando ao lado das ciências puras e das sociais, entendendo e descodificando realidades e perceções. Devoto do Renascimento, desvendou nele uma passagem sobre a qual a arte conheceu um novo elã, ajustado e alinhado com as demais expressões do ser e do saber. No cruzamento de áreas e de zonas, ergueu-se sobre vários pendores, descodificando dores e amores na expressão das formas e cores.

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