AfroBach

por José Valente,    17 Novembro, 2022
AfroBach

Depois de cinco crónicas em que expus algumas das inúmeras qualidades patentes na obra de José Mário Branco, fruto do trabalho que efectuei para a composição do disco “Águas paradas não movem moinhos”, vou continuar a reflectir convosco sobre as diversas músicas que alimentam a nossa imaginação e complexidade.

Vamos falar de música.

Não faz mal contrariar a tendência. Não faz mal procrastinar, ser aparentemente inactivo, curtir o incerto, a dúvida, o estranho. Não faz mal ter tempo para ouvir e apreciar a beleza que, no fundo e mesmo que não admitamos, precisamos como do pão para a boca para aguentar essa horrorosa percepção camusiana de que a vida é absurda.

Existe sempre uma história por detrás de cada disco, peça ou concerto. Uma circunstância que espelha, inevitavelmente, a relação entre o artista e aquilo que o rodeia. Um resultado criativo que, mesmo sendo pessoal, é uma consequência da conjuntura. 

E há também o universo fascinante dos sons. O inexplicável efeito da música naqueles que a ouvem. A textura instrumental que nos provoca apreensões inexplicáveis; a colecção de intervalos e ritmos que nos arrepia a espinha; a canção nostálgica que mexe com a nossa memória musical e afectiva; a frase melódica que nos instiga a rebelar; a outra frase melódica que nos deixa amar; o ambiente suave que nos ajuda a seduzir; e o ritmo dançável que nos contagia de alegria.

Muitas vezes reagimos emocionalmente a uma música e não sabemos porquê.

Por isto tudo, vamos falar de música.

Comecemos, então, com um dos meus discos preferidos. Uma inesperada fusão entre a música africana e a música ocidental. “Lambarena – Bach to Africa” combina os traços musicais de Bach com a força colectiva da música do Gabão. Este projecto foi editado em 1994, produzido por Mariella Berthéas conjuntamente com L’Espace Afrique, com direcção artística de Hughes de Courson e Pierre Akendengué. É uma homenagem ao excepcional médico alemão Albert Schweitzer, prémio Nobel da Paz em 1952.  

O álbum começa com a interpretação despreocupada de um excerto da Cantata 147 de Bach, cantada pela criança Aurélien. Subitamente, um coro explode com um espectacular “Sakanda, umbassa!”, enquanto é suportado por um típico movimento de baixo contínuo, tocado por marimbas e contrabaixo. Chegámos a “Sakanda” (tema tradicional), que será complementado com “Lasset uns den nicht zerteilen” (pode-se traduzir entre “não nos separemos de nós” ou “não nos vamos dividir”. Este Oratório integra a Paixão Segundo São João de J.S. Bach). 

O anunciado baixo contínuo é o primeiro indício da influência Bachiana, neste cruzamento de culturas musicais. A cadência evoluí, de acordo com a progressão harmónica de “Lasset uns den nicht zerteilen”, contudo, ainda sem a participação do coro e da letra correspondente. Antes de terminar, a mesma é assistida por uma batida feita com uma vassoura de paus, duas bilhas e apitos. Finalizada a cadência e instalada a groove, a voz de Clarisse Mouassi explora a melodia original de “Sakanda”, acompanhada pela batida já estabelecida. Depois de duas estrofes com pergunta (voz principal) / reposta (coro), o grupo alcança o refrão. Mais uma vez o potente “Sakanda, umbassa!”. E nisto, durante o refrão, eis que regressa o baixo contínuo anterior. Mas, desta vez, a marimba é substituída por flautas. O ensemble barroco começa, lentamente, a crescer. Às flautas juntam-se as cordas e o coro misto alemão que canta o Oratório na sua orquestração completa, sempre com a groove africana a segurar o aumento de dinâmica orquestral. Somos transportados para uma celebração farta de contrapontos e diálogos polifónicos construídos através da técnica imitativa, tão marcante nas fugas e invenções de Bach.

Encerrado este primeiro clímax técnico e estético, a voz feminina e seu coro africano devolve-nos o “Sakanda” original. Todavia, em vez de sermos surpreendidos pela postura barroca antes exibida, viajamos num êxtase semelhante protagonizado apenas pela proposta original. O coro africano separa-se entre várias vozes para cantar um “Sakanda” também polifónico, contudo, tradicional.

Tal como a música de Bach que comemora a Ressurreição, a dança patente em “Sakanda”, designada de lenguélé, festeja ocasiões igualmente joviais como casamentos, ou o final de períodos de luto.

O início de “Lambarena” representa bem a coesão conceptual necessária para uma fusão estilística excitante. O objectivo não foi cristalizar padrões referentes às culturas em causa, promovendo uma estranha concorrência entre ambas (algo por vezes notório em esforços parecidos), nem foi a falsa ornamentação de um estilo em prol do outro (como verificamos muitas vezes na velha intenção de fazer música tradicional com “novas roupagens”). Este projecto nasceu de uma génese de pensamento que me parece correcta: reforçar a expressão artística, aplicando sem limitações, as qualidades intrínsecas a cada um dos patrimónios culturais utilizados. Uma ligação concebida de forma natural, com respeito e com sonho.

Será esta simbiose de estilos e sons um forte indício do que deveria ser a sociedade? Será esta conversa musical, destemida e livre entre povos e tradições um exemplo metafórico para o lugar que habitamos? Não sei. “Lambarena” é apenas um disco. Mas é uma proposta musical tão aliciante, tão fresca, tão apetitosa, que eu fico, pelo menos, com vontade de experimentar um estilo de vida similarmente tolerante, inclinado para a curiosidade pelo desconhecido. E vocês?

Proponho que ouçam o disco completo aqui:

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