Ai, Costa, a vida Costa!
O amor ainda não morreu. O enredo trágico mantém viva a chama intensa na politiquice portuguesa. Sempre me questionarei o que é que o povo português tem que os outros povos não têm, e creio que a resposta não me é acessível facilmente, até que me debruce sobre questões políticas. Há Shakespeare em Portugal, mais do que aquilo que julgámos haver e onde menos esperávamos que coubesse. Cabe, cabe, com jeitinho cabe. Se não acredita, coloquemos, assim, os pontos nos is, não vá já o leitor tratar este texto com enfadonho.
Tudo se passa num prédio; um prédio rudimentar, com aldrabices e mesquinhices, mexericos e coscuvilhice, promessas e casamentos e alianças ora impossíveis, ora indescritíveis, ora repletas de vexames. Nele, tudo acontece e nada acontece. Tudo se diz e nada se diz. É o palco de arbitrariedades e de confrontações entre vizinhos que, apesar de todos se conhecerem uns aos outros, alguns até mais do que deviam, estão sempre à turra e à massa.
António Costa, um inquilino com algum estatuto e prestígio, tinha dois amores e em que nada eram iguais: a Catarina, com a sua bagagem, cheia de lábia sapiente que, ao primeiro piscar de olho, fez enrijar e debilitar do mesmo modo os ossos de Costa; e Rui, o adormecido moderado que se encosta à sombra do seu amante, de sorrisinho nos lábios, um charme derretido, encantado com os jantares que tinham juntos. Ora, também verdade seja dita, Costa tem dois braços, duas pernas, duas orelhas, dois olhos, porque não haveria ele de ter dois amores, isto da vizinhança tem muito que se diga, mais não fosse porque estão sempre a comentar a vida alheia dos outros, não é assim. Bom, o Marcelo, aquele que está no pontífice do prédio – já que é o próprio que faz as reuniões de condomínio e tudo sabe do que se passa entre todas aquelas paredes –, é o velhote que está repimpado e pousado no parapeito da janela de casa, sempre à cuca, embora esteja também ele embutido num disfarce caraterístico dele, é bem capaz de se fazer fantasma e mudar de lençol todos os dias sem que ninguém se aperceba. É todo ele os olhos do espetáculo, os olhos do amor impossível, o vizinho do lado que contempla o romance com os olhos fingidos – o malandreco; finge que nada vê, finge que está a ver chegar o neto que vem da escola à hora do costume, para o lanche comer, e depois arreda pé e vai para dentro fazer o jantar como se nada fosse, às tantas pensa Este triângulo, bom, um dia ainda vai dar chatice, ai vai, vai, não digam que o tio Marcelo não avisou depois!
Ele avisar, vejamos, não avisa, atenção, tanto que aquele é apenas um pensamento que cá tem com os seus próprios botões da camisa do lençol em que se envolve; aquilo que ele tem, de facto, é um prenúncio, como aqueles que costumam desenvolver um romance, e então o tio Marcelo que tem as previsões meteorológicas mais realistas que aquelas que os velhos acarretam nos calos debaixo dos pés, presenciou o que mais temia e, portanto, claro está, deu molho. E deu molho no amor dos três, não na sopa de legumes que o tio Marcelo está a confecionar na sua cozinha, longe do desacato que ribomba com fervor pelas escadas do prédio. A doce senhora de olhos verdes, um dos amores de Costa, grita, Não há condições, Costa, oiço as tuas declarações e não consigo concordar, e o Costa diz, Estás a dizer que me vais abandonar, logo agora, e ela nada diz, a sua expressão facial tudo diz, anui simplesmente e ouve o Costa dizer, Estamos em crise, é isso que me estás a dizer. A Catarina, que mora no terceiro esquerdo, sai disparada da casa do Costa e bate com estrondo a porta do seu cubículo. Vira costas a Costa, logo agora que tanto precisa dela. Olhe, e como uma rixa nunca vem só, também Rui mostrou o seu desagrado perante as atitudes de Costa, tendo-lhe assumido que, por muita boa vontade que tenha, admite ser contra o facto de ele usar o dinheiro para cobrir as vontades da Catarina, ah, e que o gaste apenas para os seus interesses, e como tal sai também ele disparado para o segundo direito, travando a sua enorme ânsia de lhe chamar de pantomineiro. Os amores estão de costas voltadas com o Costa, haverá paz no reino desencantado? Ai Costa, a vida Costa…
Da frincha da porta de sua casa, o tio Marcelo ouve toda a conversa, o que considera de uma extrema inadmissibilidade, já que ele é quem administra o prédio e, como tal, não apreciando que ele seja por aí comentado a bel-prazer pelas pessoas, magica terminar com algo que evite a complicação dos amantes, por isso decide colocar mãos à obra e promulgar um panfleto na porta principal do edifício onde exponha uma regra que deve ser levada a cabo de forma séria e unânime: a de todos se entenderem, só não sabe exatamente qual será e como será.
Num ambiente de cortar à faca, eis que urge um novo inquilino, um com um tom jocoso, ameaçador, talento corriqueiro para a trafulhice, pelo menos é o que se ouve dizer, tem arte no tagarelar, pois fala que se farta e está constantemente a mandar vir com coisas que o deixem de olhos revirados. Diz-se que também não aprecia que controlem o seu discurso ou o mandem calar, mas que gosta de fazer com os outros aquilo que não gosta que façam com ele, lá isso não gosta. Agora instalado no prédio e recebido não com os melhores elogios e festejos, fecha-se no seu quarto e mal dá os bons dias à sua corja de condóminos, desconfia o tio Marcelo que quer concorrer às eleições de condomínio e quer ocupar o seu lugar. Para isso, ainda terá de remar muitos barcos, muitas marés, embora o tio fantasmagórico desconfie que ele esteja a tentar recambiar para o seu lado o Rui.
A início, pareceu dar a entender uma força mais que capacitada, suficiente para ganhar eleições ao tio Marcelo, deu o corpo às balas, descia e subia as escadas com peito robusto, cara de gozão, manápulas de ladrão, azeiteiro de corpo e alma, vendia-se a quem lhe dava mais e costumava dizer a altos pulmões, como se a justiça apenas dele dependesse, É uma vergonha, é uma vergonha, é uma vergonha, enquanto partilhava um raminho de salsa ao vizinho e aos prédios restantes, era o que ele dizia e diz, mais parece ter ficado com o disco riscado, mas…atenção, são tudo manhas de quem ousa chamar a atenção de mendigos alheios desejosos por ter quem use a cabeça de baixo e não a de cima para fazer vincar politicamente nas suas decisões e, devido a tal concretização, devido a uma reflexão que advém de um órgão que não aquele que deveria representar o bom senso, a justiça e liberdade e direitos humanos e democracia, ele consegue uns quantos maltrapilhos, tentando pescar Rui para o seu cardume. Marcelo conhece esta vontade, Catarina também riposta, e o Costa já está com o pelo na benta, repreendendo o sucedido. O tio Marcelo, de robe por casa, olhando espelhos e saboreando o seu porto, pensa Ó Rui, ai bate o pé, bate o pé, bate o pé, faça assim como eu, bate o pé, ai bate o pé, ai bate o pé, foi assim que meu amor me prendeu!
Rui nem gosta de salsa e muito menos aprecia o vocábulo Vergonha usado por ele, ele diz que prefere a fineza de um Intolerável, inconcebível, implausível, imperdoável, mas, um dia viu-se apertado e nas avenças das masmorras em que Costa o encatrafiou, mais o mau olhado que tem recebido a torto e a direito dos seus e não só, do populacho trombudo, caiu na desgraça e bebeu da peçonha. Para se justificar, mais tarde, disse ele que “O homem nem é assim tão mau, ele está moderado, ele mudou, é um homem mudado!”
Nas capas dos jornais não apareceram, que destaque não é assim tanto, mas naquelas ruas não se falava de outra coisa senão na facada que Rui tinha dado a Costa e também aos seus. Apareceu, em jeito de caricatura, nos altos berros de escárnio e mal dizer, pincelado como uma princesa que estava há anos aprisionado às masmorras da esquerda, perdão, do Costa, em triângulo amoroso com a Catarina, finalmente salvo pelo cavaleiro andante, surgido das trevas, salpicado pelos guisados ardentes, causando a maior abanadela da extrema direita, perdão, no caldeirão de Rio. Ouve-se dizer que estão a comprar a aliança, mas às escondidas. Não querem escândalos e muito menos querem ser comentados pelos outros; aliás, o casal dispensa aparecer em público junto, só se for nas escadas no prédio a trocar salsa e orégãos. O Costa, há quem diga que está mal do coração, despedaçado, mas vive a sua vida junto de Catarina, mantendo um morno romance. Já com o Marcelo, se ele perdeu as eleições? Duvida-se que as perca, mas a mágoa manter-se-á para o resto da sua vida.
Crónica de Ana Marques
A Ana estuda Ciências da Comunicação. É uma espécie de Camilo Castelo Branco: “escrevo coisas aborrecidas e poucos reconhecem o meu talento. Há quem diga que tenho algum humor, eu digo que emano comédia”.