Ainda dá para ser médico em Portugal?

por Cronista convidado,    7 Setembro, 2020
Ainda dá para ser médico em Portugal?
Imagem de United Nations / Unsplash
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Era uma vez o Joãozinho. O Joãozinho dizia desde pequenino que queria ser médico, mas quando chegou ao ano para se candidatar, não tinha média suficiente para ingressar no Ensino Público. Então, de forma legítima e por pertencer a uma família com capacidade para suportar as despesas de uma faculdade privada, candidatou-se a Medicina no Ensino Privado. Independentemente das suas condições de educação, o Joãozinho lá conseguiu concluir os 6 anos de curso e encontra-se em preparação para ser médico. O que lhe acontece aqui? Exatamente o mesmo que aconteceu a tantos outros antes dele. Existem 2500 cães a 1800 ossos, se me é permitida a analogia.

Portugal e os portugueses têm de perceber de uma vez por todas que não há falta de médicos no nosso país, há falta de médicos no SNS! Porquê? Não é difícil de perceber. Se a qualquer outro profissional de qualquer outra profissão lhe for apresentada uma proposta para trabalhar num local melhor, com melhores condições de trabalho, com mais retorno monetário, com melhor qualidade de vida, não vai querer continuar a trabalhar num serviço onde não existe organização nem planeamento dos recursos humanos, onde não existe tempo para receber os doentes de forma a estabelecer uma relação médico-doente proveitosa e benéfica, onde apenas disponibilizam meios complementares de diagnóstico indispensáveis para o exercício profissional em determinados hospitais/centros hospitalares, onde não existe uma distribuição consciente e organizada da população pelos Médicos de Família… Enfim, um Serviço que foi criado em 1979, “concretizando o direito à proteção da saúde, a prestação de cuidados globais de saúde e o acesso a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social(..)” e que hoje é assegurado única e exclusivamente por profissionais de saúde com empatia e com sentido de responsabilidade social que acreditam que o SNS é o único meio através do qual uma grande percentagem da população portuguesa recebe cuidados de saúde diferenciados e gratuitos.

Alegar protecionismo exagerado ou superioridade em termos de estatuto social é um argumento que deve ser refutado em qualquer circunstância. Nenhum bom médico quer ser visto como um Deus, apenas quer respeito e valorização do seu trabalho e da responsabilidade que este acarreta. Uma coisa é certa: frequentar o curso de Medicina é diferente de obter qualquer outra licenciatura ou mestrado, porque a formação de um médico não acaba quando este conclui o curso, mas só e apenas quando obtém o grau de especialista que lhe permite exercer a profissão de forma autónoma e especializada. Não havendo vagas para ingressar na Formação Especializada, os recém-graduados ficam como médicos indiferenciados a fazer turnos nas urgências, a trabalhar em mais do que uma unidade de saúde, sem contrato nem horários fixos, sem oportunidade de investirem no seu potencial e tratar melhor aqueles que precisam, terminando a formação que lhes foi prometida no início do seu percurso. E desengane-se quem ainda acredita que um estudante de Medicina passa a ser Médico de Família quando acaba o curso. Não é assim que funciona.

É imperativo que Portugal entenda que a batalha política relativamente ao ensino público ou privado não deve ser o foco atual, porque o problema que temos em mãos não é o Joãozinho não poder fazer o curso porque não tem média ou dinheiro, é o Joãozinho fazer o curso e não ter qualificações para exercer a profissão, porque não tem vaga para se especializar. Então qual é a solução encontrada no nosso país? Abrir mais vagas para o curso e, assim, aumentar ainda mais a procura para a escassa oferta.

Por tudo isto, e para que esta frustração de ser mal ouvido ou mal interpretado finalmente desapareça, só nos resta implorar que Portugal ouça o nosso apelo, que os portugueses percebam que isto não é um problema de uma elite da sociedade (que não existe), mas um problema que nos vai afetar a todos caso as entidades políticas não realizem um adequado e tão necessário planeamento dos recursos humanos em saúde e continuem, ou a fechar os próprios olhos, ou a fechar os olhos da sociedade, com vista em interesses que não os dos cidadãos, o que culminará na infeliz, não desejada e completa degradação do Serviço Nacional de Saúde.

Crónica de Tiago Jorge Costa
O Tiago é médico recém-graduado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e em fase de preparação para a Prova Nacional de Acesso.

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