Álbuns com Pó. Ao vivo e em silêncio: Bola Sete

por Francisco Espregueira,    23 Dezembro, 2021
Álbuns com Pó. Ao vivo e em silêncio: Bola Sete
Capa do disco
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Samba in Seattle: Live at the Penthouse, 1966-1968 é um álbum com pó especial. Por um lado, leva-nos para um espaço temporal distante, por outro, não é uma reedição (como tipicamente aqui apresentamos), tratando-se do lançamento oficial deste trabalho. É, então, a primeira vez que escutamos as lendárias gravações ao vivo do influente guitarrista brasileiro Bola Sete no clube de jazz Penthouse, em Seattle, acompanhado com brilhantismo pelo baixo de Sebastião Neto e pela bateria de Paulinho Magalhães.

E se o leitor, porventura, já conhece algum dos trabalhos do guitarrista brasileiro, recomendamos que agradeça ao Sheraton. Sim, à rede de hotéis. Um dos seus executivos apanhou-o numa noite e insistiu que Bola fizesse uma tournée pelos E.U.A., tocando em bares de vários hotéis. Tratou-se de uma oportunidade monetária irrecusável para o carioca, que em 1959 abandonou de vez o Brasil. A partir daí, conectou-se com nomes lendários da música jazz, como Dizzy Gillespie, Vince Guraldi ou Lalo Schifrin, que contribuíram para uma experiência que o ajudou na sua evolução artística. Evolução essa que é paralela à de muitos dos grandes nomes da música brasileira, mas distante por ter florescido num contexto norte-americano. Os fãs de Bola Sete não eram os frequentadores de bares nocturnos do Rio ou de São Paulo, mas sim jovens como Carlos Santana, John Fahey ou George Winston.

Ter-se transformado em herói de deuses de seis cordas no folk americano ou no rock que se desenvolvia é, aos olhos de hoje, muito curioso. Mas esse é um atestado do conjunto de habilidades supremas de Bola Sete, emigrado do seu Brasil natal e da sua ancestralidade africana, inspirando-se no jazz americano e em texturas clássicas vindas da Europa. Este conjunto de 3 CDs, editado pela Tompkins Square, captura três noites estrondosas do trio de Bola Sete num dos mais populares clubes dos E.U.A. As três noites, intervaladas por 10 meses que vão do Inverno de 1966 até ao Verão de 1968, mostram como Sete fundiu anos de influências externas em algo singular, mas brasileiro — com acenos aqui e acolá ao flamenco, aos blues e a tudo o resto que coube em 29 faixas. E a música toca, emulando um oceano calmo na noite… luminosa e hipnótica na superfície, com uma profundidade insondável à medida que nela mergulhamos.

Como John Fahey escreveu, descrevendo uma das suas referências: “A música de Bola Sete vem de um tempo muito distante, quando as pessoas eram mais próximas de si mesmas, de Deus e de umas das outras”. Mas, mais de 55 anos depois, Sete talvez soe mais como um futuro distante. Samba in Seattle é um trabalho essencial no legado gravado de um músico frequentemente samplado por algumas das nossas referências modernas, como os A Tribe Called Quest ou J Dilla. Sem qualquer tipo de desprezo pelos samples (pelo contrário), este é um disco que corre numa pista diferente. Ao vivo, mas sem cores. No silêncio do clube toca a guitarra de Bola Sete. Disponível no Bandcamp.

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