“Alma Viva”, de Cristèle Alves Meira: a assombração do cinema na casa das bruxas
Este artigo pode conter spoilers.
Alma Viva, a primeira longa metragem de Cristèle Alves Meira e o filme escolhido pela Academia Portuguesa de Cinema para candidato nacional aos Óscares deste ano, chega finalmente aos cinemas, no próximo dia 3, em mais de 30 salas em todo o país. Com antestreias em Vimioso (concelho em que o filme foi rodado), Mirandela, Macedo de Cavaleiros, Viana do Castelo e Porto.
Em Alma Viva, Cristèle Alves Meia propõe-nos a evocação de uma memória situada onde ficaram cristalizados elementos da sua própria identidade. Algo que nos descreve, na nossa entrevista, com a singeleza de um cinema encantado e simples nos seus processos. É isto um filme feito com alma, com vida. Depois da apresentação no passado festival de Cannes, na Semana da Crítica, alem de diversos outros certames, como recentemente, o festival Seminci, em Vailladolid, chegou a hora de desfrutar Alma Viva também nos nossos cinemas.
Este é um filme onde a cineasta parece voltar à morada de onde nunca saiu. Pois, apesar de viver em França, a cineasta luso-francesa regressou regularmente com a família a Junqueira, a terra da mãe, uma aldeia de Trás-os-Montes, no concelho de Vimioso. Uma viagem concretizada agora com a sua primeira longa metragem, ainda que, de certa forma, já esboçada nos ensaios das curtas anteriores, Campo de Víboras (2016) e Sol Branco (2015), provavelmente já com a mira neste projecto maior, em que a sua própria memória parece ser filtrada pelo olhar de Salomé/Lua Michel, uma menina de 10 anos, sua filha, que seguramente importa reminiscências do seu próprio passado.
Sim, é uma história que evoca não só a interioridade de Portugal, a emigração, mas também a bruxaria, as festas locais, as máscaras, crenças religiosas ancestrais e até temas que podem transformar os adultos em monstros por questões financeiras e heranças. Inesperadamente, um tema adequado até ao espírito de Halloween, com Trás-os-Montes a revelar-se bem mais talhado que muitas produções milionárias de Hollywood. Nesse aspecto, assume relevo a fotografia discreta e sempre tão próxima de Rui Poças ao criar ambientes e desenhos de luz que nos remetem para algo que se torna muito familiar como as nossas recordações.
A menina Salomé (Lua Michel) chega à aldeia, vinda de França, com os pais, e logo assume um território que conhece os seus passos, os locais, os animais, os segredos, o sotaque particular. Ali mesmo onde as mulheres parecem ter a fibra que falta aos poucos homens que ainda não partiram. Sobretudo Salome que terá um “corpo aberto”, como lhe recorda a avó, qualquer coisa presa no ADN, mas que é o suficiente para sobressaltar aquela pequena comunidade.
Em redor desta simplicidade juvenil, e profundamente feminina, ausculta a realizadora memórias muito familiares, invocando um certo realismo bucólico (ou mágico!) e familiar, ainda que paredes meias com um universo de uma carga de crenças mais profundas. Como aquelas que a avó (tremenda Ester Catalão) evoca nas lengalengas, rezas e preces aos santos, suficientes para acordar entidades lendárias que desafiam os incrédulos. Sempre com a robustez e franqueza transmontana com que a avó ou Fátima (Ana Padrão) advertem a pequena Salomé com um carinhoso “tem muito cuidado minha filha”.
Central é, de resto, a cena da morte da avó, ocorrida em circunstâncias traumáticas, não só por libertar na pequena Salomé todas as crenças que partilhava, mas também por expor de uma forma crua os interesses mais mesquinhos da família, que logo ultrapassa o corpo da defunta para privilegiar interesses pessoais.
É um pouco este registo em que o universo infantil se joga com os enigmas, mais ou menos compreensíveis, mais ou menos funestos, dos adultos, com a espantosa Lua Michel a adquire um papel decisivo. Na verdade, ela transporta o filme (e nós com ele) pelo seu olhar peculiar diante as coisas, os objectos e os seres. Tal como Ana Padrão, de alguma forma invocando um prolongamento da sua presença de Campo de Víboras, em mais uma avassaladora entrega de corpo e alma.
Será até nessa possibilidade de vermos mais o filme através da perspectiva de Salomé do que pelos adultos que toda essa dimensão surreal, onírica e terrífica adquira contornos singulares. Como se os seus pensamentos acentuassem os comportamentos desajustados dos adultos. Porque será que este filme nos convocou a memória de alguma referências fílmicas? Como as pequenas descobertas da vida pelas personagens de Aniki Bobó, a primeira ficção de Manoel de Oliveira, ou os segredos e o ambiente arrepiante de Night of the Hunter, o único filme de Charles Laughton. Ou até a proposta de uma elevação de alma que nos fez pensar na singeleza de A Palavra, de Dreyer. É claro que não são as referências que importam, pois o que nos propõe este filme habitado por algo que não dominamos é talvez essa liberdade de olhar e descobrir.