Almas gémeas
O sol de Inverno lisboeta parece ter a particularidade de trazer à superfície conversas improváveis em lugares improváveis. Ou então é a força deste azul, não sei. No meu caso, esses diálogos parecem vir ter comigo, alheios, fresquinhos e prontos a usar nestas funções. O cronista que vive dos dias, amigos, é um bisbilhoteiro credenciado, um agente discreto com licença para escutar.
E então uma vez mais aconteceu: ao passar por uma paragem de autocarro retive migalhas preciosas de uma troca de palavras entre duas raparigas que aparentavam pouco mais de vinte anos. Disse uma delas (e cito de memória, não exijam demasiado, leitores): “X. está tão contente com o Y, não está?”, ao que a outra moça respondeu: “Pois está. São duas almas gémeas!”. Foi aqui que parei. Em primeiro lugar algo surpreendido pela expressão “almas gémeas” ainda ser utilizada no quotidiano e logo por duas jovens; e depois também ainda como sinónimo de perfeição espiritual e entendimento amoroso.
Sim, adivinharam: o suave rabugento de serviço a estas teclas considera que a expressão “almas gémeas”, tal como é correntemente utilizada — na verdade não conheço outras utilizações… — é sobrevalorizada. Caminhem comigo, leitores: quem diabo quer uma alma em tudo igual à nossa? Eu não, garanto. O que faz um interlocutor ser interessante em todas as áreas — intelectuais, de amizade ou amorosas — não é o reflexo mas o complemento. A possibilidade de nós que nos escapou, possibilidade essa que é infinita mas que é rara de encontrar. Dito assim isto pode parecer a velha teoria de Lacan, personagem que não me é grato, que afirma que o que nós pensamos que somos existe apenas em função do outro. Não: somos antes de que haja outro olhar. Somos formados, concedo, por milhares de olhares, actos e palavras que com sorte nos vão atravessando a vida. Mas existe algo — e aqui chamemos-lhe alma com alguma propriedade e mistério — que faz com que rejeitemos ou aceitemos o que nos vai sendo proposto.
A ideia de ser igual ao outro para o entender é para mim tão ridícula como perigosa. Preciso de referências, gostos e valores básicos comuns, certamente; mas é na diferença que se medra, sob pena de vivermos num perpétuo espelho deformado. No amor e ainda mais na amizade, o que nos conforta e refastela não é apenas o que nos é familiar mas sim o que nos provoca e por vezes faz doer.
Quando alguém me diz que encontrou a sua “alma gémea” lamento-o. Remete-me logo para o mito do doppelganger e mais exactamente para o conto de Borges O Outro, em que o velho Borges encontra o jovem Borges. E isso, garanto, não é pacífico. A ter algum parentesco, que a alma do outro não seja gémea. Um primo afastado, uma amante perdida, um filho que não conhecíamos. Só assim vale a pena abrir a porta do que somos e deixar entrar com medos mas gratidão.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.