Amigos de “nunca-mais”
“Quando tu fores lá para o teu país vais esquecer-te de mim, de certeza” dizia-me o Hafiz, no Paquistão. Estava no Vale Hunza, em Couchsurfing com o tio dele. O Gulham tinha-me recebido porque, na verdade, buscava alguém para ficar na aldeia uns meses a ensinar inglês. E depois entregara-me ao seu sobrinho, que me levava, literalmente, pela mão. E eu seguia-o, consciente de que o meu desconforto de estar de mão dada com um homem era só porque eu era de Portugal, e o seu conforto era porque ele era dali. Eu disse-lhe que, provavelmente, nunca mais o ia esquecer.
Adorava lembrar-me mas, conhecendo-me, posso supor, apenas, que tenha dito isso.
As pessoas não se esquecem umas das outras assim nem mais nem menos. Apesar de haver pessoas que já me esqueceram e pessoas que já esqueci, sei que não é uma ausência de interacções que dita o esquecimento. Se soubesse aquilo que o ditava, ele não acontecia, tornando-me então, provavelmente, escravo da minha memória eterna. Sei que quando me dou conta de que não quero esquecer um momento, ou uma pessoa, foco-me em pequenos contornos enquanto penso intensamente no que está a acontecer.
Ficam mais vincados no meu cérebro-esponja.
Lamento e aprecio o meu cérebro-esponja. Aprecio porque absorve, lamento porque temo que, eventualmente, volte ao seu formato normal, apagando alguns desses vincos pelo caminho.
Estou no Norte da China, em Setembro de 2011. Saí de Pequim nesse dia, a ideia era chegar até à Mongólia. Já é de noite e a boleia escasseia. Vejo umas portagens e estaco-me por aí, tentando falar com os condutores que param para tirar o bilhete. Não falam nenhum língua que eu falo e preço invisível, como se a escuridão fosse, agora, eu. Uma miúda dos seus vinte e poucos vê há algum brilho que possa haver em mim e aborda-me. Fala algum inglês. Estou cansado, muito cansado, saí de Pequim há dezassete horas. “Podes esperar dentro da cabine e eu, ao vender os bilhetes da autoestrada, pergunto se vão no sentido da Mongólia” disse-me. Aceitei.
Não acredito em experiências fora do corpo. Mas consigo visualizá-las. Esse foi um desses momentos. Saí do meu corpo e vi-me deitado no chão a tentar dormir numa cabine de portagem. As minhas pernas estavam por debaixo da cadeira da menina que me queria ajudar.
A chefe aparece e diz que não posso ficar ali. Chama a polícia para me auxiliar. “Não, é preciso, obrigado, eu posso ir à minha VIDA”, tento dizer, sem efeito. A minha amiga miúda promete-me que me consegue arranjar um sítio onde dormir de graça. A polícia não fala inglês e quer levar-me para um hotel lá perto. Trazem a minha amiga sem nome. Sentamo-nos no banco de trás do carro da polícia, eles arrancam-me e ela passa-me, discretamente, uma nota que equivale a cinco euros. “Não, não preciso, a sério, quando eu disse que não queria gastar, não era porque não pudesse…” tentei dizer. Não quis saber. Chegamos ao hotel, a polícia negoceia com eles e tenho de pagar catorze euros. Nove, portanto, sendo que ela acabou de dar-me cinco.
Que a minha memória não me retire isto nunca, por favor. A luz do lobby do hotel é discreta e lembro-me de tons amarelados e avermelhados. E lembro-me da cara dela. De beicinho, a esforçar-se para não chorar diz-me: “Não consegui ajudar-te. Eu disse que não ias pagar nada pelo hotel e vais ter de pagar.” “Hey, que é que estás a dizer? Tu já me ajudaste tanto. E acredita que eu nunca me vou esquecer de ti e do que fizeste por mim.”
Ao dizer isto já não me lembrava do nome dela. Nunca o saberei. Nunca mais saberei dela. Egocentricamente, espero que ela se lembre daquele europeu que uma vez esteve debaixo da cadeira dela enquanto ela lhe procurava uma boleia para a Mongólia. Espero que ela esteja bem, acima de tudo. Sinto, mesmo, amor por esta pessoa sem nome. De uma maneira pouco intuitiva ela representa os amores que encontro em viagem. Às vezes esses amores tornam-se em amigos que fica para sempre – é raro. Doutras vezes são amigos que sabemos que, lá no fundo, nunca mais vamos ver, mas que nos aparecem no feed, de vez em quando. Às vezes a intensidade é louca, apanhamos bebedeiras e fumamos dias a fio e contamos segredos nossos que nem sabíamos que eram segredos, a pessoas que conhecemos na Namíbia, no Panamá ou na Itália.
Há quem pense que um amigo é quem está lá para nós numa situação de merda. Quem o diz pensa estar a dizer uma grande coisa, não se apercebendo de que está a ver a amizade como uma ferramenta. Para mim um amigo, ou uma amiga, é alguém de quem gostei num momento, quer tenham gostado de mim ou não. A menina sem-nome não é minha amiga, mas foi naquele momento. E uma amizade não morre, do mesmo modo que a criança que se torna em adulto não morre. A criança transmuta-se, tal como essa amizade, que dá lugar a uma memória carinhosa, uma entre um milhão de estacas no alicerce da nossa visão romântica e necessária do mundo.