“Amor Estragado”, de Ana Bárbara Pedrosa: a família como forma de violência

por Rui André Soares,    11 Junho, 2023
“Amor Estragado”, de Ana Bárbara Pedrosa: a família como forma de violência
Capa de “Amor Estragado”, de Ana Bárbara Pedrosa
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Em quatro anos, a autora Ana Bárbara Pedrosa publicou “Lisboa, Chão Sagrado” (2019), “Palavra do Senhor” (2021) e “Amor Estragado” (2023), todos editados pela Bertrand.

A família é um tema transversal a toda a gente, quer se nasça com uma ou não, quer se fale da família de sangue ou da família que se escolhe (os amigos, o/a cônjuge), quer tenhamos uma família feliz ou uma família infeliz, e cada uma à sua maneira. Como nos diz Lev Tolstói em “Anna Karénina”: “Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é-o à sua maneira.” Este é o tema central deste “Amor Estragado” (2023), onde “dois irmãos contam a dissolução de uma família“, como se pode ler na sinopse. “Pela mão da violência, que é pedra de toque, assistimos a uma família cujos laços se desfazem. E à vida transformada noutra coisa“, lê-se ainda.

Ana Bárbara Pedrosa / Fotografia de Rodrigo Cabrita

Não querendo comparar mas comparando, é inevitável não falar sobre elas por causa da temática: recentemente revisitei as séries “Succession”, “Sopranos” e “Peaky Blinders” e todas têm como ponto de partida, ou antes, o enredo assente nos laços familiares e na violência (física e emotiva). Ler este livro é voltar a esse lugar da “família enquanto território a proteger“, como se pode ler na sinopse, mas é também sobre “a traição da vida adulta face às certezas da infância, a inveja, o desgosto, a degradação que o vício impõe e o que custa perder um lugar de honra. E inevitavelmente sobre a culpa — do homem que mata e de quem não o impede.” Na última temporada de “Peaky Blinders” há, também, uma fala de Thomas Shelby (Cillian Murphy), durante a “última ceia”, rodeado pela família, que pode resumir muito bem o que pode ser uma família: “Umas vezes é o abrigo da tempestade e outras vezes é a própria tempestade.”

“Meter a pata na poça pode foder a vida a um gajo. Não tivesse eu sido burro ao ponto de escolher a mulher errada e talvez se tivesse evitado tudo isto. Agora até percebo que seja fácil apontar-me o dedo. Qualquer um pode enfiar garganta abaixo o discursinho cor-de-rosa e fácil de que sou violento, de que os homens são assim, de que as mulheres passam por muito. E não digo que não passem, mas a vida não é a merda que se vê na televisão. E eu não sou violento porra nenhuma, não me dá gosto a ideia de pancada, não me meto por bater mal da cabeça, os meus sobrinhos adoram-me. Não ando às turras em tascas nem ameaço ninguém. Fora a minha mulher, nunca levantei a mão a nada. O problema era ela e qualquer um faria o mesmo nas circunstâncias em que eu estive. Se ela fosse melhor, se fosse menos bêbeda, mais decente ou mais jeitosa, o rumo teria sido outro. É fácil encher a boca com discursos que agradam a unicórnios, mas só não tem problemas quem teve a sorte que eu não tive.”

“Amor Estragado” (2023), de Ana Bárbara Pedrosa

Em entrevista à Rádio Vizela, cidade (Vizela) que também acolhe a narrativa deste livro, Ana Bárbara Pedrosa revela que esta obra de mais de 200 páginas vai mostrando a história da dissolução da família, não exatamente sob o ponto de vista da violência conjugal, mas mais a forma como os laços entre irmãos se foram quebrando, pela forma como a vida desse primeiro narrador se foi desenvolvendo, com álcool à mistura, com violência à mistura, e acaba por ser também sobre a forma como a família de origem, que parece uma coisa intemporal e garantida, pode perecer perante as más escolhas que se vai tendo ao longo da vida”, assume a autora.

A frontalidade da escrita de Ana Bárbara Pedrosa é a grande chave da identidade deste “Amor Estragado” (2023). Não há rodeios, há até brutalidade, e a escrita, assente na oralidade, imprime um lado cru que aproxima o leitor da violência que, infelizmente, tanto assola esta e outras famílias, tanto num romance como este como na realidade: “As queixas por violência doméstica registaram em 2022 o valor mais elevado dos últimos quatro anos, com a PSP e a GNR a contabilizarem 30.389 ocorrências no ano passado, segundo o portal da violência doméstica.”

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