Amor sexual e bem-aventurança
As pessoas que se interessam por temas cristãos e sabem um bocadinho de grego conhecem a palavra que está em causa quando, nos Evangelhos, Jesus fala de amor: «agápē» (ἀγάπη). Trata-se de uma palavra que podemos distinguir de outras duas palavras gregas que significam «amor»: philía (φιλία) e érōs (ἔρως). A ideia de uma expressão sexual do amor pode estar implícita em «philía» e é explícita em «érōs», mas à partida «agápē», o amor de que fala Jesus, é aquilo que um padre com quem conversei há muitos anos chamou o «amor desinteressado».
Eu falava-lhe na minha homossexualidade e nas questões daí decorrentes para o católico que eu tentava ser; e a solução que ele me deu foi que não havia mal no facto de eu ter um namorado, desde que fosse um «amor desinteressado». Ele não o disse explicitamente, mas percebi que a ideia dele era que estaria tudo bem se vivêssemos «como irmãos».
Esta exigência de que eu deveria viver como irmão do homem que eu amava e com quem eu partilhava a minha vida foi recomendada no século XX porque se tratava de um casal constituído por dois homens. Se fôssemos um casal constituído por pessoas de sexos diferentes e casados pela igreja teríamos podido dar expressão sexual ao nosso amor.
No entanto, nos primeiros séculos do cristianismo, mesmo casais heterossexuais eram desafiados a viver como irmãos num casamento isento de sexo. A «moda» veio logo com São Paulo (1 Coríntios 7), mas a literatura cristã apócrifa dos séculos II-III está a abarrotar de histórias e de exemplos que dão como ideal da vida de casados a virgindade permanente de ambos os esposos.
Nos evangelhos sinópticos (Marcos, Lucas, Mateus), Jesus não se mostra especialmente interessado no casamento, a não ser para afirmar a sua discordância do divórcio (na minha opinião, para proteger o elo mais fraco, que era a mulher). No Evangelho de João, porém, Jesus é-nos descrito como alguém que aceitou o convite para estar presente num casamento. Atendendo a que, nesse casamento, ele transforma água (símbolo de virgindade e de pureza, no mundo antigo) em vinho (símbolo de alegria sensual), talvez não passasse pela cabeça de Jesus que os novos esposos devessem viver como irmãos.
Nos séculos que se seguiram à vida terrena de Jesus, houve cristãos que interpretaram de maneira diferente o papel do sexo na vida humana. Houve os ultra-perfeccionistas, convencidos de que a condição de acesso ao reino de Deus era a virgindade ou, pelo menos, a castidade – e que os casados deviam viver uma vida isenta de sexo. E houve outros cristãos, em ambiente gnóstico, que não só entenderam o lado espiritual que o sexo pode ter como, inclusivamente, aceitaram a validade do sexo entre dois homens e a prática da «masturbação sagrada» (isto é-nos relatado, em tons escandalizados, por um escritor ortodoxo do século IV, Epifânio de Salamina, no capítulo 26 do seu livro «Panárion»).
No seu brilhante «Banquete» (onde, significativamente, se bebe vinho diluído com água), Platão põe na boca de uma das suas personagens aquilo que é o melhor efeito do amor sexual na psique humana: «érōs» tem efeito curativo sobre a pessoa humana e torna os seres humanos felizes e «bem-aventurados» (Banquete 193d).
A palavra grega usada por Platão, makários (μακάριος), é a mesma que Jesus usa nas bem-aventuranças do Sermão na Montanha: entre as bem-aventuranças, destaco esta: «bem-aventurados («makárioi») os puros pelo coração, pois ele verão Deus».
A questão de «pelo coração» (em grego, τῇ καρδίᾳ) é comentada na nota que escrevo a esta passagem, para a qual remeto.
Mas fiquemos com esta ideia: a pureza, na verdade, não é algo que tenha a ver com o pénis ou com a vagina. É algo que tem a ver com o coração.