Ana Gomes: “Pedi licença sem vencimento para não perder o pio”
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A Comissão parlamentar de Saúde foi responsável, neste último mandato, entre outros, pelos trabalhos de alteração da Lei de Bases da Saúde – que define a linha orientadora da futura legislação nesta área. Sete dos 24 deputados que a compõem têm ligações a empresas, fundações ou sociedades privadas na área da saúde.
A social democrata Maria Antónia de Almeida Santos, vice-presidente da comissão, é curadora na Fundação Renal Portuguesa. A colega de bancada Fátima Ramos é coordenadora na Fundação Assistência, Desenvolvimento e Formação Profissional (ADFP), uma Instituição de Solidariedade Social, sem fins lucrativos, com serviços para a infância e destinados à terceira idade. “No setor da saúde, a instituição responde a 228 pessoas, através das Unidades de Cuidados Continuados de Média e Longa Duração, e da Clínica de Fisioterapia e Reabilitação”, lê-se no seu site. Isaura Pedro, também do PSD, é vogal da direção do Centro de Dia de Vilar Seco, uma Instituição Privada de Solidariedade Social (IPSS).
José António Silva, do PSD, detém 60% da sociedade João, Pedro & José Antonio Silva Lda, que presta serviços médicos. Ricardo Baptista Leite, coordenador do PSD nesta comissão, tem funções não remuneradas em várias organizações: integra o Conselho de Curadores da Fundação Renal Portuguesa, é membro do Conselho Científico da Associação SOS Hepatites e do Conselho Consultivo do GAT – Grupo Português de Ativistas sobre Tratamentos de VIH/SIDA, faz parte do Conselho Fiscal do Instituto Francisco Sá Carneiro e do Conselho Consultivo Internacional da Health Concern Foundation (Mangalore, India).
Já António Sales, coordenador do PS na comissão, exerce “medicina privada na clínica de S. Francisco, em Leiria” e tem um “consultório pessoal”. E Isabel Galriça Neto, do CDS-PP, é médica no Hospital da Luz, em Lisboa.
Este é um exemplo. Terão estes políticos conflitos de interesses? Faz sentido que deputadas e deputados legislem em causa própria? Ou, pelo contrário, a sua experiência numa determinada área fará as leis e decisões políticas mais concretas e próximas da realidade?
Na verdade, no Parlamento nacional, um quarto dos deputados acumula as funções legislativas com outros empregos, no setor privado. Entre eles, o maior grupo é o dos advogados (9%), segundo dados disponibilizados pela Secretaria-Geral do Parlamento, em abril passado, ao Diário de Notícias. O pacote de alterações ao Estatuto de Deputados, aprovado por unanimidade na Assembleia da República e promulgado a 21 de junho, implicou mudanças nas regras de atribuição de subsídios, ajudas de custo, residência efetiva, seguros e assistência. Mas nada mudou em relação a um eventual regime de exclusividade – a palavra não existe no texto do estatuto.
A ex-eurodeputada Ana Gomes, que deixou a bancada socialista europeia em julho, ao fim de 15 anos, não tem dúvidas de que deputadas e deputados devem ser proibidos de trabalhar fora da Assembleia da República. Para isso, seria preciso, defende, aumentar os salários dos políticos – os atuais são “indecorosos” e “não dão para viver”. Esta é a sua fórmula: “Pagar condignamente, exigir dedicação exclusiva e, ao mesmo tempo, garantir que há mecanismo de escrutínio e controlo do que efetivamente as pessoas fazem.”
Diplomata de carreira desde 1980, Ana Gomes suspendeu funções em 2003 para se dedicar à política partidária. Filiou-se no PS e foi eleita eurodeputada em 2004. Reeleita por duas vezes, em 2009 e 2014, só deixou o Parlamento Europeu em Julho, após 15 anos. Numa entrevista, ao vivo e ao livre, na festa do terceiro aniversário do Fumaça, falamos sobre incompatibilidades e conflitos de interesses, a regulação do lobby, transparência e corrupção.
Esta é a primeira de uma série de entrevistas para pensar e debater os principais temas das eleições de outubro.