‘Ana, Meu Amor’: as cenas da vida conjugal de Calin Peter Netzer ao estilo de Ingmar Bergman
O cinema romeno dá novas provas da sua tremenda vitalidade e pertinência narrativa ao acercar-se do novelo complexo e intimista que afecta a relação do casal protagonista. Pena é que este novo trabalho de Calin Peter Netzer fique aquém do brilhantismo de Mãe e Filho, vencedor do Urso de Ouro na Berlinale em 2013, mesmo quando encena um potente e bem mais ousado drama romântico e psicológico.
De novo apresentado em estreia mundial no festival de Berlim, agora na edição de 2017, Ana, Meu Amor afirma-se como um competente puzzle enigmático e não linear, devidamente enquadrado numa temática bem mais próxima dos dilemas da enorme plateia de personagens bergmanianas, mesmo que não consiga ser tão totalmente eficaz na forma como resolve os diversos nós da complexa relação trilhada pelos universitários Ana (Diana Cavallioti) e Toma (Mircea Postelnicu) e dos anos subsequentes da sua relação.
De resto, o filme provoca-nos a atenção ao atirar-nos literalmente para uma acção em andamento, na verdade, a meio de um diálogo filosófico entre o casal. Sente-se o fervilhar da descoberta e da sedução intelectual, em que as citações de Nietzsche seguem a par de olhares tremendamente físicos. É por aí que também seguimos, tentados, pela ousadia de um naturalismo sem barreiras devidamente captado pela câmara de Andrei Butica. Sobretudo quando esse aquecimento erótico é interrompido por golpe de ansiedade apenas dominado pela sua medicação.
A segunda fase desta relação sofre um novo teste de esforço quando é confrontada com os respectivos progenitores; o padrasto de Ana, uma figura que parece esconder um passado de algum abuso ou mesmo da origem das crises de ansiedade dela, com quem Toma terá de partilhar o sofá e até o pijama; e o pai dele, numa visita igualmente atribulada. E daqui partimos para uma deambulação história algo difusa e a um nível superior de análise psicológica, até atingir uma idade madura em que o casal acolhe o seu primeiro filho, bem como os caminhos diferentes como encaram a vida e a religião.
Mesmo que esta partilha de vida se faça à custa de algum esforço para tentar ligar as diversas pontas e os profundos novelos psicológicos, percebemos de igual modo que algo acaba por inevitavelmente se perder ao longo do caminho. Mesmo quando descreve uma boa parte da geração incapaz de superar as suas hesitações e nós psicológicos. Por aí também se compreende a justeza do Urso de Prata para o Melhor Guião, assinado por Netzer, em que encena as suas cenas da vida conjugal.
Artigo escrito por Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt