A segunda mulher de Dostoievski
Por vezes, tenho a sensação de estarmos a assistir constantemente à repetição da história. Não fomos os primeiros a chegar e não seremos os últimos a partir, mas aos olhos do hoje estaremos sempre perante o maior temporal de todos os tempos, a pior das crises ou, e só de vez em quando, ao momento mais feliz das nossas vidas.
O negativo vicia, poderia ter dito Dostoievski à sua segunda mulher, enquanto esta lhe entregava as suas últimas poupanças para ele gastar na roleta numa das salas do Casino de Vevey. E, de facto, há algo de vibrante em arriscar tudo ao jogo ou em abrandar a marcha do nosso veículo para assistir ao infortúnio de outros. Mas temos de começar a questionar essa nossa cultura de sentido único, porque parando um, param todos. Porque não questionar a negatividade envolvente em que nos viciámos todos? Parece que tudo o que nos rodeia é pernicioso e negativo e que está já ou a caminho de uma cancerização pessimista do mundo. Mas será que é um sinal do fim dos tempos, tão em voga de anunciar, ou apenas mais um dos múltiplos ciclos da história?
Dostoievski morreu a 9 de Fevereiro com cinquenta e nove anos e convencido que o seu pai tinha sido assassinado pelos seus próprios servos. Aos pobres não lhes sobra mais do que o planear o assassinato dos seus amos, teria dito um dia numa taberna, a um grupo de amigos, Fiódor, que se sentia livre nas suas deambulações filosóficas sobre a luta de classes. Já o seu pai, não podia nem o fazia. Mikhail Dostoievski não percebeu muito bem o que lhe aconteceu na vida. Tentou de tudo para evitar que as suas raízes de baixa aristocracia prejudicassem a sua carreira militar. Era médico, coisa pouca naqueles tempos conturbados em que por muito menos se morria numa esquina em Moscovo, por isso mantinha apenas o número mínimo de serviçais que a decência impunha, seis.
Os seis estavam à sua espera numa noite quente do início de junho, na entrada da propriedade que Mikhail tinha planeado deixar aos filhos na localidade de Daravoi. Não sentiu nada, tendo dado o passo em falso já anestesiado pelo vodka que tinha acumulado no estômago. Foi assassinado pelas circunstâncias, teria pensado uma mente moderna, foi assassinado pela emancipação da escravidão pensaram os anarquistas do fim do século XIX, um parricídio diria, mais tarde, Freud. E era assim que o filho lembrava o pai e nunca as verdadeiras vítimas que, acusadas e condenadas, perderam as suas vidas, num cadafalso, poucos dias depois.
Então qual é o fim da cultura? Seremos todos apenas servos de uma ideia maior do que nós? Vítimas das acções dos nossos pais, a cultura não tem fim, é um fim em si mesmo. Na língua portuguesa o duplo sentido de fim é evidente e neste caso coloca-nos perante uma evidência: a cultura não pode ter fim. A cultura é o efeito secundário das nossas relações, no tempo e no grupo a que pertencemos.
Cada grupo de humanos, maior ou mais pequeno, devido às suas idiossincrasias geográficas e eco-sistemáticas foi-se tornando mais ou menos assim. Mas a diferença entre esse acontecimento ter durado muito ou pouco tempo só se relacionou com a repetição. A repetição é assim o verdadeiro pai de uma cultura. E se esse é o pai, a mãe é a autoridade. Um evento repetido durante anos, geralmente ciclos agrícolas, ou até gerações torna-se identitário e logo cultural.
A cultura é demasiado dinâmica para ser controlada, mas há sempre os que o tentam fazer. É quase cadeira obrigatória na escola de ditadores, aprender a controlar aquilo que o grupo/povo/nação considera cultura, e colocar em causa a nossa cultura é ser anti-grupo ou anti-patriótico. Assim esta soma de repetição e autoridade criou ao longo dos tempos a cultura que nos rodeia. E é aqui que ganha importância a segunda mulher de Dostoievski.
O grande escritor e filósofo russo mudou de mulher uma só vez mas de ideias mudou duas. No início queria ser próximo do povo, dos servos e odiava-os por nunca o terem aceite como um deles, depois o seu rancor desapareceu e aceitou-se como era e como eles continuavam a ser, tudo criado num episódio de infância em que Marei, um servo do seu pai, que o tratava com amor, o protegeu do medo que tinha dos uivos de lobos na propriedade da sua família.
Na infância poderá estar a resposta para a nossa dúvida, ou então no amor que podemos ter por alguém que começando por nos servir como estenógrafa, como Anna Dostoievskaia serviu Fiódor Dostoievski, se torna finalmente nosso amo, depois de termos perdido tudo ao jogo. A 9 de Fevereiro de 1881, é Anna que preparara e conduz o funeral do escritor onde estiveram mais de trinta mil pessoas, segundo algumas fontes. Ali Anna já não era a segunda mulher mas apenas a viúva do famoso escritor.