Ano Agustina: O messianismo narcisista d”Os Meninos de Ouro’

por Miguel Fernandes Duarte,    30 Agosto, 2018
Ano Agustina: O messianismo narcisista d”Os Meninos de Ouro’
Ilustração de Luísa Silva Gomes / CCA
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Este artigo faz parte do Ano Agustina, no âmbito do qual, ao longo de 2018, a Comunidade Cultura e Arte lançará, a cada mês, uma crítica a um livro da obra de Agustina Bessa-Luís, neste momento a ser reeditada pela editora Relógio d’Água.

Chama-se menino de ouro a uma criança que seja exemplar, promissora; a um jovem no qual sejam depositadas esperanças para o futuro. Mas, em Agustina, os meninos de ouro são, acima de tudo, meninos do Douro, filhos das grandes famílias rurais nortenhas, fragilizados e propensos à doença, desafiadores de qualquer autoridade. Em Os Meninos de Ouro, publicado em 1983, o foco incide sobre José Matildes, homem político fatal do pós-revolução, detentor de fundo messiânico, com francas parecenças à figura de Francisco Sá-Carneiro, ex-primeiro-ministro de Portugal.

José Matildes, advogado, a quem “os estudos jurídicos atrasaram (…) qualquer noção de perfeição”, é um homem de intelecto, da razão, incompetente nas questões dos sentimentos, habituado que estava à solidão e decepção, incapaz de ultrapassar a sua meninice, fechando-se a ler, ainda que nada entendesse (“lia com aplicação Fernando Pessoa, que achava lúcido e coerente, duas coisas que Fernando Pessoa não era”).

Acima de tudo, para José Matildes, o poder era não uma consequência da sua posição, mas “um destino a ser vivido, com todas as suas misérias e decepções, suas grandezas e seus desprazeres.” A doença, presente em todos os momentos que antecedem revoluções pessoais na vida de José Matildes, fortalece a sua vontade à medida que com ela cresce o ressentimento e a culpabilidade. Possuído por fantasmas infantis, não o faz por ambição, mas como que por vingança, com uma constante culpa dentro de si, sem razão que a origine. É alguém, portanto, imerso numa rectidão moral extrema, como forma de se proteger dos desejos e ansiedades capazes de o afectar.

Daí a aparente contradição quando José abandona a sua mulher, Rosamaria, para se juntar com Marina, uma mulher mais sofisticada, um “manequim da realidade” na qual José projecta os seus desejos fantasmais. Mas, ao contrário de Rosamaria, Marina era uma mulher completamente dependente do cenário que a cercava, “uma mulher pouco imaginativa” que parecia rebelde aos olhos da sociedade por com ela não partilhar os seus prazeres e obrigações. Já Marina via nele “uma espécie de provinciano pronto a receber a escola das ambições nobres, como seja a do poder”. Alguém que, à falta de ideias originais, “optava pelas ideias ousadas que eram as ideias feitas, com mais precipitação.”

Mas a relação entre os dois estava completamente dependente de Rosamaria, que negava a José o divórcio: “a ira de José contra ela era como que a protecção da intimidade com Marina”, e a heroína deste livro é precisamente essa provinciana esposa abandonada, e Agustina deixa-o claro logo desde início. Na sua família, a sua tetravó Ana de Cales, “amazona duriense”, dominava todo o espaço cívico e intelectual, uma espécie de figura exemplo da ortodoxia duriense, e Rosamaria, trocada por não se adequar à figura de grande mulher atrás de um grande homem, era uma mulher dura, séria, lutadora, “fiel à sua alma absurda”. Era como que a encarnação da “consciência dos limites óptimos do cidadão de excepção” que era José Matildes. Mas, perante o abandono, não se faz de vítima, “o seu orgulho era absolutamente a sua razão de existir”.

Agustina compara, aliás, Rosamaria à Natacha de Guerra e Paz, “modelo para uma paixão genuína, entre a candura e a sensualidade provocativa”, “impulsiva e irreflectida.” O próprio José bebe do tradicional romance russo “esse comportamento do fidalgo rural, que deixa à mulher a promiscuidade familiar, e conserva na neurastenia letrada a dignidade do anfitrião”, projectando-se até na figura de Pierre, “uma espécie de bom selvagem para o salão.” Porque a verdade é que José, tal como Pierre, nunca fora um homem de poder. A dinâmica, com a qual não tinha relação profunda, era imposta pelo exterior, e José “tinha que conciliar a sua identidade limitada, como a de qualquer ser humano, com a gigantesca fórmula selecionada do homem culto e capaz.” Porque o português procura o seu desejado e, segundo Agustina, só com a Revolução poderia o desejo residir nos ombros de alguém como José Matildes. Isto embora ele próprio devesse um certo culto às ideias do antigo regime, já que “muitas vezes encontrava no fio das suas ideias as mesmas convicções que os textos de Salazar exprimiam.” O próprio Matildes afirma, quando se dá o 25 de Abril, achar a revolução “uma perda de tempo imperdoável” por achar que “o sistema capitalista recuava espontaneamente e acabava dentro de trinta anos.” Não deixa de ser curiosa, aos olhos de 2018, esta ligação do Estado Novo ao sistema capitalista.

Com a Revolução, ainda que o eixo social se deslocasse, a fala oficial das instituições permanecia a mesma, e os portugueses voltavam-se cada um “para a solução dos seus interesses privados.” Mas, acima de tudo, a democracia burocrática “dera aos coleópteros [besouros] a virtude de se acharem aves com quatro asas”. Fruto da deficiente simbolização afectiva da Revolução, arranjavam agora terreno propício para o seu fundo messiânico.

 “Tinha-se dominado uma linguagem operatória, mas a linguagem emotiva tornara-se irreconhecível. Quando aquele homem apareceu munido do conceito do todo-poderoso, que nascia da não-liquidação da infância, como negação da realidade, o país assumiu o símbolo messiânico – criança fatal e sobre-humana que carrega toda a angústia, ou seja, o mal-estar da civilização em geral.”

Mas, no caminho, estava a recusa do divórcio por Rosamaria, que o consumia, ao mesmo tempo que lhe era motor de força. Rosamaria não se submetia, fazia questão de fazer oposição à figura na qual o seu marido se tornara.

“Ela perdera o respeito, não o decoro. E, de certa maneira, amava-o ainda; só que ele não suportava essa espécie de amor com um desprendimento leal, que o tornava insubmisso. Sem submissão (…) ele não podia achar honra nem satisfação social.”

Senhora duriense, não dependente de ninguém, de nenhuma autoridade, que, tal como Ana de Cales, sua tetravó, forja o seu lugar na sociedade patriarcal.

“Aquilo que nela haviam de qualificar como a mais baixa obstinação era, no fim de contas, o seu direito à mais singular das desistências da inteligência em comum e da vida em comum.” Não podiam atribuir-lhe uma identidade sem a tornar dependente de alguém ou de alguma coisa – e isso era toda a questão. É possível que, na sua origem e no seu limite, o homem não tenha uma identidade; a sua ressurreição é esse estado perfeito de ausência de identidade.”

E assim, solta da amarra da identidade e do culto narcísico do indivíduo, Rosamaria sobe. É a única capaz de escapar à opressão do desejo de domínio, tornando-se, finalmente, numa “pessoa angélica”. Torna-se finalmente feliz e está em paz, porque, como diz Agustina, “o que significa a salvação senão aquele ponto em que os homens desistem de oprimir outros homens, e se retiram com a sua limitada perfeição?”

Mas se a salvação é esse ponto de não-opressão, é precisamente nessa disputa de personagens que se forma a literatura de Agustina, em que o que interessa está longe de ser a narrativa, mas sim a forma como, com ela e com as personagens, se chega às palavras que nos impelem a pensar. Por isso, Os Meninos de Ouro é também exemplo dos tão saudados juízos lapidares de Agustina, aforismos diferentes dos vulgares por serem não apenas dependentes do seu contexto como produto do mesmo, frases inseridas num tempo concreto, diferente do ritmo temporal normal. Nesses momentos, não há dúvidas de que a literatura de Agustina Bessa-Luís é intemporal.

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