António Costa poderá ganhar o seu lugar na história
Há uns largos anos, em conversa com Álvaro Cunhal, perguntei-lhe quem era afinal Suslov. A minha questão fora motivada por uma discussão, ainda antes do 25 de abril, entre Santiago Carrilho (que viria a ser líder do PC espanhol) e um tal de Mikhail Suslov, quadro destacado do Partido Comunista da União Soviética. Cunhal ficou deveras indignado com a pergunta. Detestava Carrilho e a sua resposta saiu-lhe espontaneamente: mas afinal quem era Carrilho, essa é que deveria ser a pergunta.
O episódio veio-me à cabeça porque nessa conversa, no Palácio Beau Séjour (nunca me esquecerei), desejava entender a razão da influência internacional de Cunhal. O secretário geral do PCP, apesar de ser líder de um partido comunista num país muito pequeno, exercia uma verdadeira magistratura de influência. Quando ele entrava nas reuniões da Internacional Comunista, em Moscovo… dizia-se muito isto… a sala silenciava-se para o observar. E Suslov, eminência parda do regime soviético, fazia para que todos notassem a sua preferência pelo brilhantismo daquele camarada português.
Não quero fazer um paralelismo forçado. Os tempos são outros, as circunstâncias também e Costa é diferente de Cunhal. Porém, o primeiro-ministro tem hoje uma enorme influência na política europeia, em Bruxelas é pacífico dizer-se que é provavelmente o principal ideólogo entre os socialistas europeus. Para esse poder contribuiu por um lado a crise global dos partidos socialistas europeus e os últimos quatro anos em Portugal em que levou à cena o milagre da “geringonça”.
Paulatinamente foi ganhando espaço à mesa e nos tabuleiros de poder político e económico. Impôs Mário Centeno no Eurogrupo, conseguiu a pasta que queria para a Comissária Elisa Ferreira, tornou-se aliado de Von Der Leyen (depois de a ter combatido politicamente), é ouvido por Merkel quando a Alemanha quer fazer pontes, foi um dos poucos a ser elogiado por Boris Johnson no processo de saída da Grã-Bretanha e ganhou uma enormíssima influência na relação com Pedro Sanchez, primeiro-ministro espanhol a quem aconselhou na sua caminhada para o poder.
É também a essa luz que devem ser entendidas as suas fortíssimas declarações em relação ao ministro das Finanças holandês, Wopke Hoekstra. Recordo-lhe que ontem o ministro, com a sensibilidade e leveza de um orangotango, prometeu uma investigação para perceber a razão de alguns países não terem margem orçamental para enfrentar uma crise como esta – como é possível que não tenham folga se a zona euro cresce há sete anos, perguntou. Uma declaração feita quando Espanha e Itália, a quem dirigiu a velada ameaça, varrem mortos das ruas e têm os países devastados.
António Costa acusou o ministro das finanças holandês de ter feito declarações repugnantes. E disse mais: ”É uma absoluta inconsciência e uma mesquinhez recorrente que mina completamente aquilo que é o espírito da UE e que é uma ameaça ao futuro da UE”.
Costa não falou apenas como primeiro-ministro português (apesar de estar em causa a recusa da Alemanha e da Holanda de avançar para uma mutualização da dívida, o que pode ser um enorme problema para Portugal). Costa falou como um dos líderes de uma Europa contrária aos valores dos fundadores da Europa comum.
Na semana em que ultrapassou Marcelo Rebelo de Sousa no índice de popularidade em duas sondagens de referência; nos dias em que Portugal vive um dramático estado de emergência e na altura em que tudo parecia concorrer para uma tempestade perfeita, Costa parece ter emergido aos olhos do país como um líder incontestado. Depois de ter falhado na tragédia dos fogos, depois da confusão de Tancos, o primeiro-ministro garantiu a sua carta de alforria, o seu passaporte para a história.
Mas para António Costa não será um passeio no parque. Na verdade, nada lhe garante que consiga ganhar as próximas eleições. O Covid 19 tem sido controlado em Portugal, mas não sabemos o que pode acontecer amanhã. E mesmo que corra tudo bem a seguir teremos um longo Inverno. Se Churchill perdeu as eleições depois da segunda guerra mundial (quando era um Deus), Costa também as poderá perder. Mas nesta semana ficou mais nítido o seu talento para multiplicar os pães.