Ao meu avô
Há pessoas que sentimos que deveriam ser eternas. Há personalidades que se distinguem dos seus pares por feitos realizados ou por transportarem consigo características genuínas que buscam o bem comum.
Sentimos que as pessoas que nos são próximas, sobretudo familiares, ficam connosco até fecharmos os olhos eternamente. Não julgamos, em vida, ser possível que haja uma rutura abrupta que nos impeça para sempre de voltarmos ao contacto com essa mesma pessoa. A morte marca o fim para quem parte, mas não para aqueles que cá ficam.
Os nossos familiares mais velhos foram aqueles que nos acompanharam desde pequeninos. Sejam pais, tios ou avós, todos nos ajudaram a desenhar o nosso percurso durante o crescimento e maturação daquilo que somos. Pegaram-nos ao colo, andaram connosco de mãos dadas quando atravessávamos a passadeira, iam para nossa casa quando estávamos doentes e não podíamos ir à escola.
Na passagem da nossa primeira década para a segunda de existência, vamo-nos desenvolvendo não só em termos de transformações corporais, mas sobretudo em relação àquilo que somos e pensamos. Aí, começamos também a compreender melhor as atitudes daqueles que nos rodeiam. Percebemos porque é que a nossa avó nos colocou de castigo quando não comíamos a sopa ou porque é que o nosso pai não nos deu um telemóvel quando ainda andávamos na escola primária.
Passados os anos vitais para o nosso crescimento, começamos a ter um tipo de conversa com os nossos familiares mais velhos que, para além da infância, nos vão proporcionando bons momentos de diálogo, de onde retiramos muitas vezes lições daqueles que tiveram inúmeras experiências ao longo da sua vida. E que bom é sabermos como é que os nossos pais se conheceram, como é que a nossa tia era em pequena ou para onde foi o nosso avô na guerra colonial.
Para além do afeto criado, há ainda um sentimento de profundo respeito e admiração pelos nossos familiares mais velhos. Serão sempre eles, sangue do nosso sangue, os que nos acompanharam no início das nossas vidas e nos ajudaram a ser aquilo que somos hoje.
No entanto, inicia-se sempre a fase para a qual nenhum de nós está preparado. O dia da ambulância. O dia que vamos ao Hospital. O dia em que o médico pronuncia a doença que nenhum de nós quer acreditar ser verdade. As visitas que, infelizmente, se vão tornando despedidas. O dia em que o telefone toca e o óbito é declarado.
Na despedida, a igreja enche-se e comove ver que tanta gente gostava do nosso familiar falecido. Familiares afastados e amigos reencontram-se, e entre tantas coisas más, essa é a única positiva. O padre inicia a missa. O órgão toca sinfonias que trazem lágrimas ao mundo. A missa acaba. O cortejo fúnebre inicia-se. A carrinha desloca-se lentamente, enquanto todos os outros vão atrás. Alguns tocam no caixão. Entramos no cemitério. O caixão desce e a terra vai caindo sobre ele.
Escreveu Camões que existem pessoas que por ‘’obras valorosas, da Lei da morte se vão libertando’’. Não precisamos de ter realizado grandes feitos. Basta marcar a vida das pessoas que nos rodeiam. E o meu avô fez isso.