Ao redor
Fazia sol, me sentei num banquinho lateral. Acima, as folhas soavam, riscando o chão da praça. Não longe, estava um saxo em acompanhamento, a pedir trocados. O som físico. Sorri leve e olhei. Via as pessoas. Passando, ficando, voltando e rodando. A máscara ainda estranha, embaça a visão, me esforço a buscar o apesar.
Uma bolsa cospe o cabo carregador, até as mãos da interligada de olhos na rede. Uma criança cambaleia, testando as pernas recém-adquiridas. De boné, óculos e máscara: aquele era só lateral. Há quem respeite os caminhos, e há quem pise a grama, num ato de resistência. Uma menina parada de olhos online, pescoço quebrado e sandália plataforma.
Um vestido laranja corre atrasado. A outra acabou de fazer tatuagem. Uma senhora olhando baixo, envergonhada na sua solidão, busca entender a direção, parece temer ser vista. Quase peço perdão, porque a vi.
O menino interrompe o passo para olhar a sola do sapato, buscando ali pegadas despercebidas. Não pareceu encontrar. Seguiu. A criança explora o jardim, é tão baixinha que a flor lhe é mais perto. Ela levanta o vestido, mostra a fralda, numa naturalidade de corpo. Quase deita na grama, buscando a cor, queria nivelar o olhar. Quando nivelamos o olhar? Aprendizado.
Um FaceTime passa ao lado, busco a sandália plataforma e, sim: continua ali. O namorado estende a mão às costas, um convite à que vem atrás. Entrelaçam e andam colados. Como é bonito, pessoas coladas. Dois meninos jogam bola, a bola que é metade do corpo. O bonezinho virado para trás tropeça, o outro faz bananeira enquanto não é a vez de chutar.
E eu no banco, o lateral. Tento me colocar ali, nas vidas que não são minhas, que são vistas, mas que são meio minhas porque eu as crio, as preencho. O jazz virou bossa nova. João Gilberto e a saudade. Ai, a saudade que estava disso, poder olhar no outro a vida que acontece.
Tira a máscara e posa p’ra foto. Checka no celular e discutem com o dedo indicador se é direita ou esquerda. O amigo que está atrasado. Os colegas comentando a história constrangedora. Da qual só escuto meia frase, o que coube nos passos da minha audição.
Eu falo também. Descrevo. Meu gravador documenta a praça e as vidas que empresto dos outros. A observadora. Uma bicicleta me hipnotiza na roda (girando, girando, girando), e a criança dá moedas ao saxo de pernas cruzadas. Eu rio, quase gargalho, nem sei o motivo. Acho que são os olhos, é bom tê-los externos. Ter o que encontrar no campo de vista. Estar rodeada, na praça, no banco lateral, com ondas sonoras e a menina da plataforma, ainda no celular. Fazer parte, mesmo que avulsa. Participar na minha loucura de falar de gravador e gargalhar sem motivo.
Uma mãe e um carrinho, o bebé me vê. Me vê e me fixa. Grandes globos oculares. Ele se distancia, levado pelas mãos matriarcais, mas segue fixo em mim. Eu estava descoberta. A observadora a ser observada. Me senti exposta pelos olhos acabados de nascer. Era como se falássemos a mesma vista, cúmplices. A mãe não parava de levar, uma despedida gradual, o sumiço subtil do meu novo amigo. Sorri leve e olhei. A praça. O som no tato, as folhas no chão, os riscos no céu. O sol fazia e me sentei na lateral do banquinho. Ao redor.
Flávia Six é jornalista e escritora, vê nas palavras um fim e gosta de falar do que passa batido. Cresceu numa cidade pequena no sul do Brasil, formou-se em Jornalismo pela PUC-Campinas e atualmente estuda Línguas, Literaturas e Culturas na Universidade do Porto.