Aqui vive um bicho

por Henrique Pinto de Mesquita,    2 Abril, 2025
Aqui vive um bicho
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Aqui vive um bicho. Não conheço o seu tamanho, a sua cor ou o seu cheiro. Não sei há quanto tempo existe: se o trago desde a barriga da mãe ou se veio na infância. Nunca o vi, mas imagino-o como um pedaço de carne crua: não está vivo, mas tem fibras e músculo; não respira ou fala, mas todos os dias o ouço. Às vezes, salta-me ao coração e aperta-o muito, como se o quisesse rebentar.

Não sei em que parte de mim o bicho vive. Conheci-o em pequeno. Caía o dia e lá vinha ele jardinar as facas que me plantara na garganta. Só que: «o Henrique é uma criança». Só que: «xixi-cama». Só que: à noite, na cama, acordadíssimo, olhos pregados no teto, bicho por cima de mim.

Pegava na minha cabeça quente — o cabelo ainda estava penteado pela minha mãe — e enfiava-a num buraco escuro; a minha pele passava a ser feita de flores e sentia uma violenta conexão com a minha morte, como se se abrisse um túnel de acesso ao infinito. Bicho não me mostrou a finitude da vida, bicho fez-me senti-la: somos aquela flor para que se sopra e tudo voa.

Sou um adolescente e amanhã tenho escola. É domingo e a melancolia pousa-se-me como um manto inquebrável. Bicho não dá tréguas: já não sou a criança de quem abusa, mas ainda sou o adolescente a quem dá lições. Aos domingos atravessamos Guimarães para ir jantar a um tasco: fora da janela está tudo escuro e aqui dentro a coisa não vai melhor.

É que aqui vive um bicho. E só na adolescência se o começa a domesticar. Habituamo-nos a nós: a tristeza grudou-se no coração e interrompe-nos como os cordões dos sapatos que, entretanto, aprendemos apertar.

(com aquele amigo, naquele sítio, daquela vez)

No silêncio rouco das madrugadas, o bicho volta — sempre. Ele está maior: mas nós também. Crescemos e a sua personalidade fica mais nítida: hoje pede poesia — e nós damos-lhe poesia. Agora quer música — e música tem. Bicho reclama por um filme — e um filme vê o bicho. Mimado e vingativo, sufoca-nos se não lhe dermos de comer. Exigente, pede o belo, sensível e verdadeiro.

Só que bicho é chato — e forte. Às vezes, está tão zangado que nada o satisfaz. Aparece num desses fins-de-tarde meigos e esvazia-nos a alma: seca-nos como atum e faz-nos das costelas um reco-reco: tr-tr-tr-tr. É aí que bicho não é amigo; é aí que bicho nos faz chorar.

(E, depois, despeja uma betoneira de cimento por cima do nosso peito).

Mas bicho vive em nós — e nada o mudará. Talvez seja a sua presença diária que impeça que outro, maior e mais perigoso, se instale. Foi ele — sei que foi ele — quem, em criança, me barrou na pele o coração; é ele — sei que é ele — quem me aponta o olhar aos lírios dos campos e repara no diferente verde dos teus olhos quando voltas do mar.

Foi ele quem me guiou pelo escuro por onde já não tropeço. É por ele que crio e escrevo. É através dele que sinto e vejo. É ele quem não calo e escuto. É ele quem brinca com os meus cães e me abraça quando me abraça a minha mãe. Bebé: eu conheço-te os lábios, sei que são teus, mas é ele quem me beija quando sou beijado com o teu amor — e as festinhas, que me dás e sem as quais não passo, sinto-as nos rins porque ele fá-las lá chegar.

Sei que se bicho não existisse talvez não precisasse de tudo isto. Mas: valeria a pena estar cá sem isto tudo?

Sugestões do cronista:

Quem vive a Lisboa não ficará desiludido com uma visita à Good Company, uma nova livraria-café inglesa, perto do Campo Pequeno, que sabe ir ao que vai: vende bons livros e serve bom café. A vida itinerante sentou-me à mesa da Cervejaria Martins, em Guimarães, para me confirmar uma coisa que muito irrita os meus amigos portuenses: é lá que se faz uma das melhores Francesinhas do país.

Nos livros, o poema CANÇÃO, que está no Flor Cadáver (Assírio & Alvim, 2024) de Jorge Sousa Braga, foi o melhor de março: “(…) às vezes é preciso tirar/ do peito o coração/ e deixá-lo arder/ em lenta combustão/ ou deixá-lo sangrar/ até que deixe de pulsar/ ou te expluda na mão”. Na música, a sueca Molly Nilsson, no seu álbum Imaginations (2017), veste-se de Ian Curtis e faz bolinhas com uma chiclete.

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