As actrizes, os actores e o desejo dos outros
Talvez o “Poemacto” seja um dos poemas mais belos de Herberto Helder: “O actor acende a boca. Depois, os cabelos. / Finge as suas caras nas poças interiores. / O actor põe e tira a cabeça / de búfalo. / De veado. / De rinoceronte. / Põe flores nos cornos. / Ninguém ama tão desalmadamente / como o actor.” Os actores e as actrizes. Pois bem, já fui actriz, fiz o Conservatório de Teatro (onde fui muito feliz) e exerci a profissão durante uma década. Os actores e as actrizes (bem como os bailarinos e as bailarinas) são, sem dúvida, os artistas mais vulneráveis da cadeia das artes. Explico porquê. A sua existência depende maioritariamente do desejo dos outros. O seu trabalho depende maioritariamente do desejo do outro. Os actores e as actrizes são escolhidos ou preteridos (nos trabalhos), e isto tem um peso na sua auto-estima e nos seus rendimentos. No contexto nacional, as poucas oportunidades de audição levam a uma pressão enorme. Falhar numa audição pode ser determinante no início da actividade profissional; tão cedo não haverá nova oportunidade, e fica-se marcado. O meio é demasiado pequeno, todos saberão que se falhou. Por isso, quando houver nova oportunidade (se houver), já se estará registado como “fraco”. Isto para os principiantes, claro. Para quem já trabalha, ser ou não convidado para determinado projecto depende do círculo de amizades, toda a gente sabe. O meio é demasiado pequeno, repito, toda a gente se conhece e acaba por ser natural que se escolham precisamente aqueles que já se conhecem e com quem se deseja trabalhar.
Sempre me comoveu esta dependência do olhar do outro. Não só do olhar de quem contrata, de quem escolhe os actores e as actrizes, mas também, e depois, do olhar do público. Os actores e as actrizes estão sempre vulneráveis perante o desejo dos outros. E os espectadores são implacáveis: ou amam ou odeiam ou ignoram (nem sabem o nome), não há meio-termo. Ainda assim, aquilo que me comove verdadeiramente é a capacidade dos actores e das actrizes de continuarem disponíveis, trabalho após trabalho, dia após dia, para se sujeitarem novamente ao olhar do outro. Em tempos trabalhei com um encenador que acusava os actores de serem seres perversos, de usarem a vida dos personagens para experimentarem a sua própria vida. Concordo, claro. Mas há nesta perversidade uma ingenuidade pueril. A noção do jogo, da brincadeira, sabendo sempre que se está a atingir algo maior; o “falar verdade a mentir”, como escreveu Almeida Garrett (embora se referisse a outras paixões), está sempre presente. E isso é, de certa forma, cândido.
Falar dos actores e das actrizes é falar de paixões, sem dúvida. É a libido que os move durante a representação. Um dos professores e encenador do Conservatório costumava dizer aos seus alunos (homens e mulheres): “Representa com a cona!” Era uma indicação de força vital, nada de sexual. Da expressão de força de um indivíduo, do centro do seu corpo. Talvez poucos artistas tenham a mesma capacidade de entrega emocional e física no trabalho. Muitas vezes estão ali todas as noites, durante meses, a entregar-se ao texto, aos colegas, ao público. O acto da representação equivale a uma espécie de cópula amorosa onde existe vaidade, sim, mas, sobretudo, humildade, entrega e respeito por algo que se encontra ao nível do inefável. O trabalho dos actores e das actrizes é sagrado (quando bem feito), ritualístico e religioso. Nunca se sabe quando é que vão acontecer milagres em cena, mas eles acontecem. E os actores e as actrizes (além de toda a equipa de criativos e técnicos), e todos os que assistem, sabem-no e têm noção da excepcionalidade.
Por isso é tão difícil assistir impavidamente à situação precária em que os actores e as actrizes se encontram. À falta de desejo e de respeito, flagrantes, do Estado. Sim, é aqui que começa a ausência de desejo e de respeito pelo papel do actor e da actriz (bem como de todos os artistas, profissionais e técnicos do espectáculo). Os tempos de pandemia vieram acentuar uma situação já de si tão frágil.
Daí explodirem vários protestos extremamente pertinentes. E se, por um lado, não se pode obrigar ninguém a desejar, é possível e necessário obrigar a respeitar.