As apaixonadas “Palavras Cruzadas” da portugalidade de David e Miguel
No rescaldo d’”O Último Tango em Mafamude” (2018), de “Miramar Confidencial” (2019) e de “Raia Shopping” (2020), David Bruno, por ora, simplesmente, David, voltou a juntar-se à voz do rapper Mike el Nite (por ora, também, Miguel), que, no seu repertório, traz “O Justiceiro” (2016) e “Inter-Missão” (2018). O Norte, assim, junta-se ao Sul, de onde Miguel é proveniente (Lisboa), depois de uma experiência tão bem conseguida em “Interveniente Acidental“, um dos porta-estandartes do álbum “Miramar Confidencial”. No entanto, Miguel mudou-se para Norte — e lançou um single nessa mudança — e reforçou a amizade com David, juntando, de novo, talentos e evocando o mais profundo que as memórias das cassetes e do princípio dos CDs traz. Assim, “Palavras Cruzadas” reporta, na sua capa, ao segundo álbum da discografia da dupla Lucas e Matheus (de 1994, homónimo), mas, no seu conteúdo, mergulha nessa herança cultural, que, não só suscita o sertanejo, mas também as bandas mais perfumadas da portugalidade desses idos anos de 1980 e de 1990, desde os Anjos, os Bandalusa e os Santamaria, mas também os “atos únicos” de Tony Carreira, Mónica Sintra e Graciano Saga, entre tantos outros. Tudo isto, porém, em uníssono com essa rica e abundante influência sul-americana, da qual tantos destes artistas se inspiraram e da qual catapultaram.
Ao lado das presenças incansáveis (e abençoadas) das suaves linhas de guitarra de Marco Duarte e da de Renato Cruz Santos (de visual aprumado e de camisa limpa, mas com o galanteio incólume), David e Miguel abriram o livro desta viagem pela universalidade do território português, aquilo que une todos os distritos e as ilhas, no seu melhor (e pior). A primeira das canções resgata uma dos poemas inéditos escritos por David, “Passadiços do Paiva”, agora, porém, adaptado nesta materialização no disco. Os Passadiços, um dos talismãs mais procurados na natureza portuguesa. “No Passadiço outra vez”, a letra revolve entre momentos passionais entre as cascatas, as praias fluviais e as paisagens pitorescas. Mais um cartão de visita para, a dois, desbravar caminho nestes passadiços. Também desses poemas inéditos é “Sónia”, uma canção de (fazer o) amor que transporta para uma daquelas road trips ao longo do litoral do país, especialmente, neste caso, pela zona de Atouguia da Baleia, nas redondezas de Peniche. Uma autêntica balada ao nível dos tesouros dos anos 90, onde todos os preparos alimentam esta experiência musical e memorial.
“INATEL”, também ele poema inédito, é um hino a uma das instituições de recreação e de veraneio que já vem do Estado Novo, mas que se perpetuou para lá da queda da ditadura. Ficou esse conjunto de espaços e de meios para o descanso e o lazer e a dupla fez questão de se dirigir ao lugar onde se imortalizou o período de férias de tantas famílias portuguesas. O Algarve, nomeadamente Albufeira. A campanha de marketing moderna — da qual muitos licenciados podem e devem tirar notas — que David e Miguel se esforçam por fazer foi o primeiro single deste trabalho, tendo sido recebido com grande atenção dos media e com uma repercussão nacional. Com um pitch de grande qualidade composto e apresentado por parte dos músicos, o videoclip, agora mais profissional, realizado por Francisco Lobo, capta toda essa experiência do espaço (e do tempo) e desconstrói a concorrência como poucos, abrindo o apetite para as gerações mais novas poderem usufruir da mística daquilo que é o INATEL e das típicas férias do Algarve.
“Dias de Varão” (não, não foi gralha) abre os horizontes dos pôr-do-Sol do final do “Varão”, embora no interior, aquecidos pela força da carnalidade descrita nas letras e nas emoções de ambos os intérpretes. Talvez a faixa menos tipicamente portuguesa de todas, mas, decerto, das mais universais. Do engate mais elegante para a conquista mais vigorosa. São as ditas paixões de “Varão”. Depois, “H2ON” é ainda mais balada que todas as outras até ao momento. Só podia ser marisco à mesa nesse jantar a dois, com prenda a requintar um manjar que direciona para o H2ON Motel, mais um estabelecimento hoteleiro, desta feita por terras de Miguel, em Loures. Os lençóis de seda que acolhem esta união dos corpos e das almas. O guitarrista Marquito tem o seu próprio momento, um tributo melódico de dois minutos que remonta aos solos mais caraterísticos daquele sertanejo mais lamechão e degustante. O único protagonista é Marco Duarte, o carismático Marquito, que, nos seus acordes, recria partições da memória coletiva musical portuguesa e até estrangeira.
O “Amor Pago” devolve as vozes à ribalta, mas traz a preocupação pela conta a pagar, pelas despesas que a paixão traz. O amor pago, movido pelo dinheiro e não pelo desejo, que é tão badalado nas letras e nas vibrações de David e Miguel. Neste caso, é só Miguel que, em marcha ré, se preocupa pelas cobranças que o “amor” traz. Miguel quer tirar as aspas ao amor e assume as despesas até falir, movido por essa força da paixão. Por último, “Rosa”, que é movida por um salero mágico, com algum pimba e até hip-hop à mistura. É uma ode à rosa, que é flor e ser de devoção; é uma colheita que vai direta ao coração. De Penafiel até Valongo e ao seu Motel Avenue, a procissão da rosa até ao seu esplendor. Um canteiro musical de excelência, onde a declaração passional está sempre ao rubro. Como pano de fundo, como sempre, a cultura de um sampling sempre curado com acerto e precisão, com requinte e dedicação.
As “Palavras Cruzadas” são feitas pelo amor, pela paixão que move uma portugalidade sentida nos vocábulos, nos tempos e nos lugares. David e Miguel uniram-se, qual dupla de sertanejo, que resgatou corações e que criou faixas inesquecíveis por essas terras fora, nos seus arraiais e nos seus memoriais. Para quem esperava um risco pelo sertanejo, só o encontra nos incríveis samples, esses tão caraterísticos desta força musical. Porém, é um estilo que, apesar de não enganar e de, aparentemente, ser previsível, encontra sempre as palavras e as referências certas para contar as histórias de amor e as paixões que David e Miguel trazem do seu vasto imaginário. No fundo, um álbum que resulta, que encontra a tal portugalidade evocada num passado de viagem e de veraneio, mas sempre com a paixão, tão obstinada, como chauffeur.