Ensaio. As biografias contra-atacam
Em 2015, comecei a estudar sem pressa a vida e obra de Tomaz de Figueiredo, escritor ligeiramente notado décadas atrás mas esquecido desde a morte em 1970. Prossigo devagar porque ninguém está à espera do que tenho para dizer e porque as respostas que procura dizem respeito sobretudo a perguntas que a minha obra de ficção me levanta. Como o detective holístico Dirk Gently, cedo percebi que precisava de reconstruir a totalidade do meio literário para compreender não só a originalidade de Tomaz mas o seu esquecimento, por isso pus-me a reunir toda a literatura memorialística ao meu alcance: biografias, autobiografias, volumes de cartas, colecções de entrevistas, diários. A única parte épica desta empresa foi a reunião em si; de vez em vez lá pedia a um amigo, o Gilberto, que me arranjasse nos sebos brasileiros certo diário de José Gomes Ferreira, umas memórias de Luís Cajão, uma troca de cartas entre Adolfo Casais Monteiro e Ribeiro Couto. Se bem me lembro, a última vez que requisitei os serviços do Gilberto foi para arrebatar uma cópia de Conversas com Letras, de José Jorge Letria, onde para variar Tomaz é até mencionado. A dificuldade nesta etapa deveu-se a muito deste material estar esgotado; mas a etapa da leitura foi exuberantemente fácil, o que praticamente não existe não exige muito esforço.
Partindo dum deserto, tenho assistido com agrado à paisagem florindo de biografias literárias. Porém, testemunha da anterior pobreza, tornei-me sensível à animosidade dos portugueses no tocante à conservação, compreensão e testemunho do passado. Por exemplo, a crónica do dia 10 de Fevereiro de António Guerreiro, “Contra as biografias”, longe ir a contrapelo do vox populi, é apenas o seu megafone. A superficialidade com que Guerreiro discorre sobre tudo não me devia irritar, é o seu brasão. Mas superou-se ao tentar marcar posição contrária. Ao sondar o fenómeno das biografias, não primam por surpresa nem o prisma por que sonda nem a prognóstico. O prisma é o perene: um tanto obscuro pensador vienense anterior ao poder de Hitler que talvez nem soubesse pôr o dedo sobre Portugal num globo açambarca a análise do aqui e agora. O prognóstico — bem, a sua telenovela catastrofista não tem propriamente conclusão, continua de crónica em crónica, mas a conclusão desta crónica concreta é o cliché das cem últimas: a cultura está em cacos e é culpa do capitalismo. A que canto da contemporaneidade foi encher o cântaro do desencanto desta vez? Que cometa avistou com catástrofe à cauda? Algo de terrível se passa por estas bandas: biógrafos já brotam aos bandos por aí com direitos de flora autóctone. É verdadeiro e vil: os portugueses finalmente aparentam pensar que indivíduos nascidos em eras remotas merecem olhar atento, gesto de admiração, esforço de os divulgar a um público alargado.
Sem nomear editores, Guerreiro vê a moda das biografias como um “género editorial” nascido da mera vontade de vender. Mas que as bios vendam é certamente melhor do que a alternativa experienciada por Maria Antónia Oliveira, que foi ver a tiragem do seu óptimo Alexandre O’Neill – Uma Biografia Literária guilhotinada pela Leya. Guerreiro chuça ainda a suposta mania de tratar a vida do biografado como “destino”. Estou consciente desse perigo: há tempos procurei expor os tiques hagiográficos que eivam As 7 Vidas de José Saramago, de Miguel Real e Filomena Oliveira. Mas casos concretos não demonizam um género inteiro. De modo geral, o surto biográfico tem dado resultados valiosos.
Arejemos os áridos argumentos: em 1930 certo alemão escreveu uma diatribe contra a prática das biografias. Chamava-se Siegfried Kracauer. E sendo isto crónica de quem é e lendo que o Sig passou pela Escola de Frankfurt, nem precisei que Guerreiro explanasse por bê-á-bá que a barbárie das biografias começa com “b” e acaba em “urguesia”. Mas posto que a cada episódio um novo telespectador pode estar a iniciar-se no enredo, venha daí a sinopse da visão do cronista para não perder o fio à meada: “Simplificando, digamos que ele entende que a ilusão biográfica fornece o sossego e bem-estar de que a ‘nova burguesia’ carece. A ilusão biográfica consiste em fazer do biografado um indivíduo coerente, consciente, unitário, soberano, que se vai tornando progressivamente naquilo que é.”
Dizes bem, simplificando. Complicando seria lembrar que a biografia enquanto género literário remonta à Antiguidade (Plutarco, Vidas Paralelas; Suetónio, Os Doze Césares), mas o weltanschauung guerreiriano só reconhece a história depois de frustrada a Revolução Francesa e triunfantes os pequeno-burgueses.
A susodita ilusão parece-me conforme a natureza: as pessoas tornam-se progressivamente naquilo que são. Especialmente escritores (a birra de Guerreiro implicitamente visa as biografias literárias): Eça de Queiroz é a súmula de livros que escreveu aos poucos. No entanto, coerente e unitário não é o Eça retratado por João Gaspar Simões ou Alfredo Campos Matos, que acentuam acidentes, falhanços, livros abandonados ou incompletos, ideias em rascunho, potencialidades irrealizadas. Actualmente, é da praxe dividi-lo em três fases: o jovem com réstias românticas antes de 1871; o feroz heraldo do realismo depois de 1871; e o relaxamento da militância realista e positivista indiciado em “Idealismo e Realismo” e “O Bock Ideal”. Os biógrafos de Eça sabem que seria falso integrar numa unidade coerente este homem cheio de incertezas e em constante mudança. Guerreiro acompanha os estudos ecianos?
Todavia, assumamos que Guerreiro tem razão, que as bios tendem a tornar uma vida em “destino”. O pior que poderíamos dizer é que está tudo bem, então, porque a biografia tem servido para isso desde Péricles. Quando o jovem Guerreiro estava a armazenar os futuros nomes da sua telenovela, as Edições 70 alimentavam a moda do Estruturalismo com colecções de Linguística onde cabia a Retórica, mas só da moderna. Retórica antiga era démodé, que utilidade teria para quem espreme o mundo entre Maio de 1789 e Maio de 1968? É pena, porque para os gregos a biografia, ou panegírico, era de facto um género literário, com topoi bem delineados, que convertia uma vida em destino. O morto tinha que ser o maior dos homens, por isso não fazia mal derivar a sua linhagem dum semideus, ou até dum deus olimpiano, uma das benesses do pensamento mítico. Um augúrio excepcional tinha de preceder o nascimento: cometas, terremotos, pestes, erupções, como que o mundo a saudar o ímpar bebé. O panegirista estava à vontade para inventar, aliás o seu dever era esse; o panegírico não lida com factos, compõe um modelo de vida exemplar, a súmula da vida ideal a imitar pela comunidade. “O seu propósito não é dizer a verdade, mas reafirmar e recriar de raiz o consenso em redor de valores prevalecentes”, explica Laurent Pernot em Epideictic Rhetoric. Comparados com os antepassados, os biógrafos modernos são certamente mais rigorosos com os factos (espreitem as notas de Joaquim Vieira e de João Pedro George), mais cépticos, desencantados e desconfiados das teorias dos “grandes homens”, menos moralistas. Os receios do Sig não têm nenhuma validade, em 1930 ou em 2023.
Contudo, a crónica já vai em mar alto e em vez de retroceder tem de prosseguir, naufrague ou aporte. A meu ver, naufraga. Ainda a glosar o Sig, segundo o nosso timoneiro a bio trata-se de “uma forma de literatura que satisfaz plenamente quem não quer arriscar um único passo para além do seu limite individual e para além da sua própria classe.” Aí está: se gostas de bios és um cobarde espiritual. Audaz bordoada vinda dum escrevedor de folhetins intelectuais que acocora as opiniões atrás de sacos cheios de paráfrases garimpadas noutros. Depois desta crónica passei a saber que pensa o Sig sobre bios. Mas que pensará Guerreiro?
Pensa é para quê pensar pela própria cabeça quando pode encerrar com outra (e encerrar-se noutra) paráfrase? Em 1924 Martin Heidegger terá dito, diz-nos Guerreiro, que “a única coisa a registar na biografia de um filósofo é que nasceu em tal época, trabalhou e morreu.” Toma, tópico tratado até ao término do tempo: num canto do ringue e a pesar 90 quilos, a arte da biografia praticada sem derrotas há 2500 anos! No outro canto, pesando 92 quilos, o contendente ao título, o Titã de Todtnauberg! Eis o toque da campainha! Agora 2500 aproxima-se, atira uma direita a Martin, mas Martin esquiva-se! 2500 não despega, os punhos voam, Martin deixou-se apanhar nas cordas e, au! Que direita! Martin caiu! O árbitro começou a contagem, mas Martin já se levantou. Agora avança ele. Vejam aqueles olhos cheios de fúria! 2500 defende, mas o aríete ariano de Martin não lhe dá descanso! 2500 tenta retomar a iniciativa, mas falha o golpe e fica exposto. Martin aproveita e continua a malhar! 2500 vai aprender a mal a não desproteger os flancos. Os punhos de Martin coruscam como o Mjölnir nas mãos de Bill Raio Beta! Como é que um conceito abstracto se aguenta nas pernas com tanta pancada? O seu treinador devia pensar seriamente em atirar a toalha ao chão. Martin é incansável, está a pulverizar o oponente como se fosse um pedaço de Lebensraum! 2500 ainda reage, atira alguns socos! Bolas, donde veio aquela esquerda de Martin?! O famoso Heid-und-seek. Caiu! 2500 caiu! O árbitro está a contar, mas ele nem mexe! 8, 9, 10! Acabou! Martin Heidegger é o campeão indiscutível! Fez-se história neste ringue! Está decidido! Os paramédicos estão a tentar reanimar o vencido, mas para quê, os últimos 2500 anos da arte da biografia não valeram patavina! Depois dum breve intervalo juntem-se a nós no estúdio onde está o nosso comentador especial, C. G. Jung, que nos vai explicar o que significa lutar possuído pelo espírito sanguinário de Wotan e se isso quebra os regulamentos.
Talvez Heidegger fosse clarividente e se referisse à própria vida, pois os biógrafos espreitam-lhe os schwarze hefte para avaliar não se foi ou não nazi, mas quão nazi foi. Depois de Paul de Man, que escondeu o anti-semitismo e forjou o currículo académico, e enquanto esperamos mais pormenores sobre o passatempo de Foucault de f*der meninos norte-africanos de oito anos em cemitérios, Heidegger é o herói da Universidade moderna com esqueletos no armário suficientes para suprir um filme de terror com figurinos. Talvez os estudiosos deixassem de se interessar pelas biografias de pensadores se estes parassem de ocultar crimes e cabalas.
O senão da especialidade de Guerreiro, o recurso ao argumentum ab auctoritate, é a lassitude dos limites. Se tenho de concordar com Heidegger sobre bios, que tal aquela vez em que mandou Husserl à merda porque o ex-professor era demasiado judeu para os novos amigos nazis do ex-aluno? Certamente concordo com ele quando se chamou um “falhanço humano” por nem ter ao menos assistido ao seu funeral. Mas, se admitiu que era falível porque lhe confere Guerreiro infalibilidade? Heidegger não se dedicou à arte biográfica; porquê então endeusar a sua opinião em áreas fora da sua alçada? Ironicamente, Guerreiro transforma-o postumamente no tipo de tudólogo que Heidegger detestou pela vida fora.
Não descerro o objectivo de Guerreiro, além de ser aquela altura da semana em que tem de sujar umas folhas como quem suja lenços na altura das constipações sazonais. Que almeja? Banir os biógrafos da sua Calípolis? Quão realista é isso? Quando redigiu Martin Heidegger, até George Steiner teve de botar o barrete biográfico. As histórias das ideias de Isaiah Berlin seriam incompreensíveis sem apreender os homens por detrás delas. O finca-pé de Guerreiro de que a biografia não importa lembra-me os que advogam a inexistência do livre-arbítrio; fazem-no, mas nunca ninguém os apanha a viver em conformidade com as crenças que propalam. É da nossa essência querer compreender-nos compreendendo o passado. Da biografia de indivíduos ao estudo da história, dos mitos da criação orais das tribos aos cientistas que investigam o que aconteceu há 13 biliões de anos no surgimento do universo, as raízes, origens e começos atraem-nos. Suprimir essa inclinação é tentar conceber uma humanidade inconcebível.
Hoje em dia, a posição de que artistas e pensadores não têm biografia, apenas a sua obra, já tem a própria biografia feita. Todos sabemos que a metodologia biografista, liderada por Hippolyte Taine, reduziu o estudo da literatura ao estudo da vida do autor enquanto súmula da raça, meio e momento, tornando a obra secundária. Um excesso pagou-se com outro. O total apagamento do autor estimulou Formalismo Russo, o New Criticism Norte-Americano e a ideia inerentemente modernista da autonomia da obra. Tardiamente, Roland Barthes descobriu o New Criticism mas chamou-lhe “A Morte do Autor”, e a amnésica Universidade bizarramente ainda hoje julga que teve uma ideia original. Hoje em dia, estas metodologias coexistem pacificamente com biografismo.
No entanto, em Portugal a história andou às avessas. Convém lembrar que o ser “moderno” é antes de mais uma atitude perante circunstâncias concretas. Através da revista presença (1927-40), José Régio e Gaspar Simões promoveram uma concepção da literatura como transmutação das áreas mais autênticas da alma do autor; para eles a verdadeira escrita não andava longe da autobiografia romanceada. Nessa altura, Portugal era dominado por autores artificiais, académicos, que obsequiavam o gosto do público. Régio tencionava limpar a literatura do mundanismo e da prostituição recentrando a sua fonte no interior do artista e não nos compromissos com o mercado. Enquanto críticos, os presencistas valorizaram o estudo da vida do autor para a cotejar com a obra em busca das correspondências. O saldo positivo foi a divulgação de documentos privados; foi na presença que saíram cartas inéditas de António Nobre, graças à intervenção de Adolfo Casais Monteiro. Gaspar Simões praticamente estreou a biografia literária em Portugal com Eça de Queirós, o Homem e o Artista (1945), seguindo-se Vida e Obra de Fernando Pessoa (1950). Houve precursores como História de António Vieira, de João Lúcio de Azevedo, e A Mocidade de Herculano, de Vitorino Nemésio, mas Gaspar Simões acompanhou a prática com a teorização e defesa deste género através da sua doutrinação semanal no Diário de Lisboa.
Se a história fosse uma lógica contradança de contrários, aos presencistas ter-se-ia seguido uma era de artistas embevecidos com forma e técnica; em vez disso foram suplantados por hiper-anti-formalistas, que alcandoravam nas estrelas quem exibisse virtudes específicas: adesão ao programa estético do PCP, a uma visão marxista da sociedade; relatos singelos sobre a miséria do campesinato eivados dum vago humanismo. Em muitos casos, bastou moverem-se nos círculos certos, elogiarem as pessoas certas. A biografia do autor, no estrito sentido do seu ideário político, tornou-se o aferidor da qualidade do texto. Foi tiro ao alvo ao talento.
Nos anos 60, quando o New Criticism estava nas últimas e voltavam em peso os estudos biografistas e historicistas que reinseriam o autor no fluxo do seu tempo, em Portugal estavam prontas as condições para outra geração se demarcar estridulamente de presencistas e das “fábricas de génios” neo-realistas, como gozavam os detractores na época. “A Morte do Autor” parece um totem feito de encomenda para os unir à volta dum mito alternativo. Quando Maria Alzira Seixo, Eduardo Prado Coelho e C.ª tomaram de assalto a Universidade após 1974, a intenção do autor tornou-se anátema nas salas de aula. Uma amiga minha, a professora Maria do Carmo Vieira, contou-me que dois dos seus professores não podiam ouvir falar de contextualização histórica ou biografia. Tudo se limitava ao texto como se o escritor não tivesse experiência de vida e fosse por ela influenciado. Hoje em dia, a Universidade portuguesa continua virulentamente anti-biografista quando a Inglaterra e os EUA estão noutra há décadas. Guerreiro é o produto desse sistema coercivo: nascido em 1959, por volta de 1980 entrou na Universidade a inspirar um miasma denso em Barthes, Derrida, Foucault e outros fanáticos da linguística para quem não há nada fora do texto.
Todavia, é ilusória a análise textual pura.
Em 1878, Eça de Queiroz já se ocupava da “vida como destino” das biografias. Ao seu editor, Ernesto Chardron, definiu O Conde de Abranhos como “uma biografia” que só é “implicitamente um romance”. Narrada por um panegirista, secretário do falecido ministro, da “aparência grandiosa” transparece a “nulidade do personagem.” Na minha opinião, a interpretação da obra de Eça sairia diminuída sem recurso às cartas. Sem as cartas referentes à Correspondência de Fradique Mendes não saberíamos que Eça tencionou troçar duma moda específica: queria que a correspondência de Fradique fosse recolhida “como se fez para Balzac, M.me de Sévigné, Proudhon, Abélard, Voltaire e outros imortais”. Nisto, antecipou-se ao Sig. Mas, quem aduziria o conhecimento de modas intelectuais doutra época ficando-se pelo texto? Este pormenor enriquece a releitura, devolve agência a Eça, mostra o livro em diálogo com o seu tempo. A Correspondência de Fradique Mendes não surgiu porque sim, surgiu porque um fenómeno cativou Eça e isso suscita outra pergunta: porquê este fenómeno e não outro? Graças às cartas, percebo que é inseparável da ambição de Eça de inovar. Ao nomear Abranhos “biografia”, pensou ter chegado a uma “forma nova”, sem “precedentes em literatura”. A originalidade é sempre discutível, mas o narrador infiável Zagalo, que relata uma estória de triunfo sob a qual lemos a verdadeira, está de facto menos próximo dos narradores omniscientes do realismo oitocentista do que dos jogos pós-modernistas de Nabokov. (A estrutura desta novela segue à risca os topoi do panegírico greco-romano: o nascimento de Abranhos é até anunciado por augúrios.) Por sua vez, o pastiche de Fradique revitaliza o antigo romance epistolar com outras possibilidades narrativas. A Eça teria parecido pouco realista um clássico como Pamela, cuja protagonista relata uma intriga coerente através de cartas enviadas ao mesmo destinatário. Eça ter-se-á perguntado, Que é um volume de cartas? Para Eça, textos avulsos que um remetente envia de vez em quando, sem fio condutor, a variados destinatários. É por isso que Fradique dispensa enredo, sendo apenas uma série de comentários sobre vários tópicos, capturando o efeito duma colecção de cartas duma pessoa real. Da vida passamos ao texto com uma noção mais clara da intenção formalista de Eça e a capacidade para avaliar se a alcançou ou não.
Paradoxalmente, Guerreiro desdenha o estudo do passado, mas assenta a sua autoridade em pensadores do passado. Semana sim encosta-se ao Heidegger anti-biografista, semana não papagueia o Walter Benjamin que na esteira de Marx queria arrancar a “aura” à arte. Mas como desmistificar escritores sem saber quais partes da vida mistificaram? Todos conhecemos a estória do “dia triunfal” de Fernando Pessoa na versão contada em carta a Casais Monteiro: como a 8 de Março de 1914, em estado de transe, Pessoa recebeu mediunicamente trinte e tais poemas de Alberto Caeiro, de imediato intitulados O Guardador de Rebanhos. Mas Ivo Castro provou que não se passou assim: Pessoa deixou rascunhos, contradizendo a recepção automática dos poemas; além disso, os poemas de Caeiro foram escritos entre 4 de Março e 10 de Maio e não há prova documental de que algum tenha sido escrito a 8 de Março. Uma pergunta: Castro fez biografia ou análise textual? Aparentemente, debruçou-se sobre rascunhos e manuscritos, logo as revelações provêm de análise textual; mas a interpretação depende de investigar a actividade de Pessoa em dias concretos em ordem linear, o que é do âmbito da biografia. Sem reconstruirmos os passos de Pessoa antes de 8 de Março de 1914, como poderíamos averiguar se o “dia triunfal” existiu ou não? Esta desmistificação empobrece o mito? Para mim, acentua um dos aspectos mais modernistas de Pessoa. A Casais Monteiro revelou-se um artista não só ocupado a forjar um mito mas cioso de se inserir numa dimensão espiritual fora da alçada da racionalidade. Isso irmana-o com os outros modernistas que, destruída a religião tradicional pela ciência, se focaram em actividade mitopoéticas eclécticas: o Rilke visitado por anjos; o Yeats que estudou magia; Breton, leitor de Éliphas Levy; Artaud, que viajou ao México em busca duma cultura intocada pela razão cartesiana. Apesar de o dia triunfal ter sido mundano, não podemos dissociar a versão relatada a procura de Pessoa por experiências extramundanas.
Por falar em ocultismo, da mera leitura do texto, sem recurso ao estudo da época, nunca saberíamos que William Blakefez Songs of Innocence and of Experience para gozar com os livros de versos infantis moralistas de Isaac Watson, Divine Songs for Children e Moral Songs. O cotejo dos poemas de Watts levou a encontrar a simetria com poemas de Blake em que a “moral” é subvertida. Isto é análise textual ou investigação biográfica? Hoje em dia praticamente só sabemos que Watts existiu porque se entrecruza com os estudos blakianos. Mas só o sabemos porque alguém desviou os olhos do texto para o tempo de Blake.
Não há análise textual pura. Não pode ser selada em vácuo como comida numa linha de montagem por braços robóticos assépticos; toda a interpretação está contaminada (ou enriquecida) pelo conhecimento das circunstâncias biográficas do autor. É difícil chegarmos a um texto em inocência edénica e separarmos a leitura de nós mesmos. Nem ganhamos nada com isso.
A ideia de que o artista e a obra estão separados resulta da incompreensão de que o estudo da literatura não se rege pelas regras das ciências exactas. Quando Galileu e Descartes estabeleceram o “método científico”, separaram o sujeito e objecto, observador e observação. A ciência tornou-se o domínio do objecto, do mundo exterior, que é aprendido sem distorções do sujeito. Quando a Física pôs as Humanidades em crise no século XIX, uma forma de as tentar salvar foi afeiçoá-las ao empirismo quantificável e mesurável; se as fundamentassem em “factos”, se as tornassem mais objectivas, obteriam o respeito da ciência. Até o biografismo de Taine foi uma tentativa de cientificar a análise textual: que há mais factual, menos vago e ambíguo do que dados biográficos? Que dúvidas há sobre o ano e o local do nascimento e da morte, o apelido dos pais, etc.? A reacção formalista partiu do idêntico pressuposto de que o estudo da literatura se devia comportar como a Física: tratar o texto como matéria bruta analisada ao microscópio. Tal como derivamos a composição duma pedra penetrando em camadas cada vez mais profundas até chegar às partículas elementares, a análise puramente textual postula que o texto é um objecto que entrou no universo por si. Este método funciona para pedras e plantas, para processos como erosão e oxidação. Mas os cientistas nunca souberam o que fazer com a consciência, que não é matéria mesurável, quantificável ou directamente analisável por instrumentos. A solução da ciência foi fingir que a consciência não existe. Quando Heidegger andava a dar cursos sobre Aristóteles, a “consciência” estava na lista negra dos cientistas. O psicólogo B. F. Skinner, promotor do “behaviorismo”, ia ao ponto de dizer que o comportamento humano podia ser estudado sem fazer caso da “vida interior”, que era quando muito uma ilusão; bastava estudar o homem exteriormente, como se não estivesse imbuído de volição, paixões, entusiasmos, intencionalidade. Mas isso é falso e é delírio negar que obras de arte são fruto de actos conscientes. Não sabemos porque existe a pedra (se formos ateístas), mas a literatura é o reduto do teísmo: o texto é o resultado duma intenção, é o contentor duma consciência concreta que canalizou a sua atenção para algo ao longo de anos até emergir algo num estado que a satisfaça.
É, pois, impossível isolar com pureza química biografia e análise textual. Kathleen Raine, um dos maiores peritos em William Blake, estudou Ciências Naturais em Cambridge nos anos 1920, onde conheceu os gurus do New Criticism, I. A. Richards, F. R. Leavis e William Empson. Embora amasse poesia, não se matriculou em Literatura porque não lhe fazia sentido “estudar” o que qualquer um pode fazer sem professor. Enquanto ensaísta, nunca aderiu ao New Criticism. Num ensaio ela lembra as limitações da crença de que o texto explica tudo. Ao analisar um poema de Gerard Manley Hopkins, “The Windhover”, Empson faz uma interpretação destes versos
Brute beauty and valour and act, oh, air, pride, plume, here
Buckle! AND the fire that breaks from thee then, a billion
Times told lovelier, more dangerous, O my chevalier!
baseada em buckle ser um verbo. Mais tarde outro intérprete mostrou que este buckle é afinal um substantivo, para mais termo usado em falcoaria (o poema é sobre um falcão), cujo sentido seria familiar a Hopkins. A ambígua frase here buckle tanto dá para verbo como para substantivo. (Ironicamente, Empson deve a fama a um estudo sobre ambiguidade.) Afastando-se desta estreiteza, Raine voltou ao estudo da vida e do tempo do poeta, começando por ler o que Blake teria lido. A sua investigação levou-a à descoberta de Thomas Taylor, o Platonista, o primeiro tradutor de toda a obra de Platão para Inglês e de outros neoplatonistas como Plotino, Proclo, Jâmblico. Ela mostrou que Blake leu Taylor e dele extraiu a tradição neoplatónica que enforma a sua poesia. Aliás, Taylor praticamente inventou o romantismo inglês e o transcendentalismo americano, nele foram beber Coleridge, Keats, Shelley, Wordsworth e Emerson. Partindo do tempo de Blake para a sua obra, Raine revolucionou os estudos sobre Blake e não é exagero dizer que o Blake actual é o que ela nos ensinou a ver.
Em termos científicos, poderíamos dizer que a atitude de fundir análise textual, biografismo e historicismo equivale à teoria de sistemas que suplantou o reducionismo da ciência clássica. Galileu e Newton fizeram avanços notáveis desmontando fenómenos naturais em componentes cada vez menores. Mas desde a revolução quântica que a ciência, pelo menos a cosmologia, tenta perceber o universo como um todo, um sistema holístico de fenómenos funcionando interligados uns aos outros. Em Objectivity, Lorraine Daston e Peter Galison mostram que os cientistas do século XX passaram a procurar sistemas, estruturas, padrões. Gaston Bachelard chamou-lhe “o novo espírito científico”. Rebatendo a visão clássica de que a ciência progride partindo fenómenos complexos em fenómenos simples, escreveu em 1934: “Na realidade não há fenómeno simples; o fenómeno é um tecido de relações. Não há natureza simples, substância simples; a substância é uma contextura de atributos. Não há ideia simples”, diz, porque a ideia simples “deve estar inserida, para ser compreendida, num sistema complexo de pensamentos e de experiências.” Os melhores estudiosos literários do século passado relacionaram as partes num todo maior. Perceberam que para ser especialistas tinham de se tornar generalistas.
A minha opinião é de que as biografias são complementos úteis. Em vez de Heidegger, estou com a intuição de André Maurois de que tudo acerca dum grande homem se reveste de importância. A biografia não adveio da burguesia para lhe proporcionar conforto mental. Acredito que muitas biografias são actos de amor e formas de manter vivos homens e mulheres que excitaram a nossa admiração. Acredito que os queremos compreender melhor como recompensa pelo bem que nos proporcionaram. O cínico que quer rebaixar a biografia tão-só a outro esteio da mundivisão burguesa nunca terá explicação para actos altruístas que nenhuma compensação salvo interior trouxeram ao biógrafo. Vejamos o exemplo de William Blake. Os Guerreiros do século XIX, os pensadores públicos, marimbaram-se para ele. Em 1880, Matthew Arnold nem o mencionou em “The Study of Poetry”, embora fosse um apelo ao estudo da melhor poesia. É um ensaio muito ao jeito das crónicas de Guerreiro, catastrofista, entediado com a cultura moderna e popular do seu tempo, assustado com a proliferação de leitores com gostos populistas. Mas, tanto bom gosto e nem conhecia a grandeza de Blake. Se calhar foi pelo melhor: outro Guerreiro da época, o crítico de arte John Ruskin, conhecia Blake bem o suficiente a ponto de ficar de pé atrás com o seu “cérebro um tanto adoentado”. Quem se preocupou em manter Blake vivo quando o ignoravam e menosprezavam? Alexander Gilchrist, o primeiro biógrafo de Blake, um amador no sentido nobre e lato. Passou oito anos a fazer uma biografia sem público e só parou porque a escarlatina o matou; The Life of William Blake saiu em 1863 com o apoio dos irmãos Rossetti. Nesta obra se apoiou o poeta Algernon Swinburne para publicar William Blake: A Critical Essay, estudo heroicamente ilegível, contendo uma biografia compacta em formato semelhante às “curtas biografias dos políticos que às vezes os jornais publicam” que exasperam Guerreiro. Que ganharam em difundir um autor menosprezado pelas sumidades? Ganharam esta tocante nota de apreço: “O Sr. Swinburne, o Sr. Gilchrist, e os irmãos Dante e William Rossetti merecem muito da literatura por terem trazido Blake à luz do dia e tornado conhecido o seu nome na Inglaterra de cima a baixo”, escreveu W. B. Yeats no prefácio à edição da poesia de Blake em 1893, outro passo na descoberta do grande poeta visionário inglês.
As biografias são mensagens atiradas em garrafas, não por náufragos, mas para náufragos. As pessoas escrevem biografias para pertencerem a uma irmandade que admira certa figura porque, como os gregos o sabiam quando criaram o panegírico, realmente há quem mereça a nossa admiração, devoção e até emulação, se tivermos a coragem para tal. Essa irmandade, espalhada no tempo e no espaço, une-se à volta duma dívida para com um homem ou uma mulher por lhes ter despertado paixão ou mostrado beleza.
Há duas razões para Guerreiro estruturar um raciocínio em redor do Sig e do Martin: uma é o escárnio instintivo do provinciano pelo que os indígenas pensaram sobre o assunto; outra é o ignorar que o assunto foi sequer debatido em Portugal. Desconheço a situação em Weimar em 1930, mas por cá nessa altura o problema não era o excesso de biografias, era a sua embaraçosa inexistência. Aliás, o género memorialístico nunca recrutou legiões. “Em Portugal não se escrevem ‘Memórias’: prova de egoísmo, e de torpeza de alma”, acusa o narrador de Memórias d’Além da Campa dum Juiz Eleito (1856), de Camilo Castelo Branco. “Aqui, até ao último bocejo, todos se ocupam do que são, do que podem ser, e nada do que foram.” Devido a este desprezo pelo passado, deixou-se perder espólios de escritores, suas casas e recheios, suas bibliotecas privadas cheias de marginália. Jorge de Sena, estudioso do passado, chorava os espólios que “vão parar ao lixo por mão dos nossos herdeiros”. Em 1944, Gaspar Simões lamentava: “Escrevem, infelizmente, muito poucas memórias em Portugal, e raras são o que seria bom que realmente fossem. Insensivelmente, o memorialista português descai na anedota, e isso deprime a sua obra, deprimindo-a a si próprio. Certos livros de memórias não passam de colecções de piadas.” E: “O português só sabe falar do passado da pátria. É pena que não tenha melhores olhos para ver o seu próprio passado de homem.” Em 1969, Liberto Cruz notava a propósito da autobiografia de Ruben A: “A autobiografia é um género literário que levanta ainda muitas desconfianças entre nós. Assim é natural que muitos leitores peguem nesta autobiografia dum escritor português com certo dissabor se não desinteresse.”
Um país patologicamente sem biografias, autobiografias, memórias, diários, edições de correspondência privada. Guerreiro não ignora esta lacuna, numa crónica de 2019, onde já então genuflectia diante do Santo Sig, referiu que a “biografia de escritores e figuras da cultura nunca foi um género muito cultivado por estes lados”. A calamidade reportada pelos outros ele a aceita placidamente. Décadas atrás, perguntavam o porquê da falta duma tradição biográfica/memorialística e apontaram razões: o catolicismo, a Inquisição, a longa ditadura? Ao invés Guerreiro pergunta, Pra quê? Nos EUA, é tranquilo que qualquer escriba de chacha encontre o seu “pedante”, como lhe chamava Nabokov afectuosamente; mas em Portugal até os maiores estão por conta própria: tal disparidade não o atormenta. Enquanto pensador público português, cuja função é pensar sobre a sua sociedade, não se perturba com a indiferença dos portugueses perante o passado. Para semelhante traição é preciso recuar a cerca de 1960 quando Artur Portela Filho, em vez de simpatizar com as campanhas de democratização da cultura feitas à margem da ditadura e apesar de inúmeras dificuldades, optou por gozar com a alfabetização do povo. “A cultura é inevitável e já ninguém pode ser aberta e orgulhosamente bárbaro como um barão medieval.” “Hoje a cultura é admitida. Há até um certo respeito pela cultura. Um respeito desconfiado. Sente-se a necessidade de ter cultura geral, que outra dá muito trabalho e não vale a pena.” “Uma das formas de escapar-se à cultura é ser-se culto. É ter-se cultura geral, o mesmo que não ter coisa nenhuma.” Que horrível, dar ao povo um nico de cultura, ainda que deficiente; antes deixar os gaibéus analfabetos. Com anti-salazaristas assim quem é que precisava de salazaristas?
No caso de Guerreiro, isto faz parte duma visão estrutural. Em 2019 já se mostrava impermeável aos encantos da biografia, ao “recordar que a decepção foi a experiência que obtive da maior parte das biografias que li, ou que abandonei a meio, de maneira que aprendi que não há outro género tão permeável à fraude.” Talvez não sejam para ele. Mas ele é também o literato que tanto ama livros que adorava que houvesse menos. O refrão do seu pensamento é de que demasiados atulham o mundo, por que culpa a “burguesia”, apesar de Ann M. Blair ter historiado a ansiedade causada pelo excesso de livros até à Antiguidade. Mas sabemos desde a Escola de Frankfurt que a história só começou em 1789. Parece também ser novidade para Guerreiro que os livros geram outros livros.
Desta incapacidade de lidar com o mundo tal como sempre foi resulta o seu semanal arzinho altivo, o traço trocista. Penso que Guerreiro realmente se julga mais sábio e maior perito em dada figura do que os que os estudam com recurso à biografia. Deve-se achar melhor conhecedor de Eça do que Gaspar Simões e Campos Matos, capaz de clarear a obra de Raul Brandão melhor do que Guilherme de Castilho, capaz de maiores perspicácias acerca de Pessoa do que Richard Zenith que coroou trinta anos de estudos com uma biografia de 1000 páginas. Se pegar em Blake, pensar-se-á capaz de achados que escaparam a Raine. E Ezra Pound? Hugh Kenner deixou a biografia de Pound repousar mais de vinte anos, entre 1948 quando visitou com Marshall McLuhan o poeta preso no Hospital St. Elizabeth (Kenner fundou os estudos poundianos com The Poetry of Ezra Pound, 1949), até à obra-prima que é The Pound Era (1971). Mas Guerreiro deve pensar que, a frio, consegue extrair dos poemas de Pound um rasgo brilhante que escapou ao escrutínio enciclopédico de Kenner. Se é capaz de tanto, porque é que não o provou até hoje? Tem oportunidade toda a semana.
A leitura de biografias é um remédio para tanta vaidade. Guerreiro tamborila constantemente sobre o ruído do mundo moderno, sobre a produção inflacionária de textos; chora o fim da arte como uma religião, do escritor como sagrado; está sempre a carpir o fim do silêncio reverencial em redor da escrita e da leitura. Todavia, o biógrafo dedica meses, anos de atenção contínua a uma tarefa. É especial a capacidade dos biógrafos de se não desviarem do trilho imposto, nem é menos digna de admiração do que a abnegação a que o artista se impõe para criar. Ele é uma súmula de silêncio, o silêncio da reverência que Guerreiro não encontra mais no mundo contemporâneo. Em 2021, fui à margem do Vez, em peregrinação quási-religiosa. Visitei a Casa de Casares, onde está o espólio de Tomaz de Figueiredo, senti que entrava num templo, tocado pelas salas e paredes preservando os itens permeados por ele: as fotos que tomou da ria de Aveiro; a máquina de escrever; o piano; o cosmorama descrito em Uma Noite na Toca do Lobo; as páginas relatando um crime verídico redigidas pelo punho da vítima que inspiraram Procissão dos Defuntos. O ínfimo barulho que os biógrafos fazem é o virar de papéis encarquilhados e o desdobrar de microfilmes. Sacrificam as vidas, tempo, dinheiro por outrem, para criar algo. Espiritualmente, é-me gratificante ser um fazedor em vez dum espectador.
Porque detesto o ruído do mundo, desprezo em geral tudólogos incapazes de fôlegos longos, os que não fazem mas criticam os que fazem. Décadas atrás, o nosso sofista encarreirou pelo hábito de opinar semanalmente sobre tanto quanto se passa na praça, esteja ou não qualificado para tal, mas nunca teve a coragem de se remeter ao claustro fecundo que tanto recomenda aos outros para enterrar no tutano no tempo uma tabuleta que indique, Estive Aqui. Para quem tanto usa e abusa do nome de Heidegger, nunca se tocou que é a personificação do que Heidegger chamava gerede (e Kierkegaard, snak), em Português de lei “tagarelice”. Os agelastas são impérvios à autoconsciência. Embora se tenha em conta de ser um prodígio do pensamento, é tão-só outro razoável juntador de espumas, granjeando uma gota de prestígio em vida mas esquecido mal bata as botas. Viver num país que mortifica a memória tem esse senão. Mas porque sei quem é Raul Brandão e quem é António Vieira, em mim Guilherme de Castilho e João Lúcio de Azevedo sobrevivem aos cronistas. “O louvor é a prática da arte”, escreveu Blake. E Ernest Hello: “O homem inteligente eleva a cabeça para admirar e para adorar; o homem medíocre eleva a cabeça para zombar. Tudo que está acima dele parece-lhe ridículo, o infinito parece-lhe o nada.” Quando louvamos acedemos à melhor parte da nossa alma.
Felizmente, a influência de Guerreiro não é tanta que possa travar o que espero seja uma mudança mental duradoura. Eu preferia que a voga das biografias proviesse duma pulsão pessoal profunda. Já observei que muitas parecem ter nascido de propostas de editores em vez da admiração altruísta que motivou Gilchrist. Por essa razão não sei se esta moda se tornará modo de ser entre nós. Mas deixem a biografia ser encorajada por filisteus farejando negócios. Em 1974, Gaspar Simões teve de ir publicando os estimáveis Retratos de poetas que conheci em segmentos semanais no Diário Popular porque era financeiramente impossível tirar uma sabática para o fazer em repouso. Antes haver por fim editores que pagam de antemão para os biógrafos se poderem dedicar à tarefa. Em busca de mediatismo, os editores por ora priorizam Saramago, Cesariny, Luiz Pacheco, Pessoa, Agustina, Cardoso Pires, os que menos precisam desta amplificação graças ao seu estatuto. Talvez um dia os biógrafos descubram o gozo de ir contra a corrente e pesquem nomes menos lustrosos, içando achados inesperados que enriqueçam a nossa compreensão do passado. As biografias vêm tarde, mas venham em torrentes. Se algumas forem cainhas, o tempo e o juízo de cada um que façam a destrinça. Até agora, tem-me agradado muito o trabalho de João Pedro George, Cláudia Clemente, António Cândido Franco, Joaquim Vieira, Bruno Vieira Amaral. Festejemos enquanto dura.