As conquistas de Roma
A Netflix é o Uber do cinema. E um filme como o tão badalado “Roma” é o primeiro passo desta revolução, a qual, como sempre acontece, vai causar enorme destruição antes de triunfantemente se afirmar.
“Aconteceu no Oeste” é uma caubóiada com todos os matadores, moscas e balas. Estreado em 1969, bem depois da missa do 7º dia pelo western, sob a batuta de uma banda sonora palpável o filme é uma voluta absolutamente ornamental, todo ele forma e feitio, que aos apocalípticos pareceu uma espoliação quase paródica e amaneirada do género e aos integrados uma divertida homenagem a ele. Sergio Leone queria fazer – e fez – prova de que o cinema tinha qualidades inalcançáveis à TV e enquadramento após enquadramento até os espectadores do primeiro balcão tinham de rodar a cabeça para ver um dos duelistas quase no Marquês de Pombal e o outro com os pés já nos Restauradores, na ponta oposta do ecrã.
Quando no clarear da década de 80 o vídeo se propalou por esses lares afora, era o cinema que ele metia dentro de casa. Com o vídeo o pessoal libertava-se da cadência imposta pela distribuição cinematográfica – se viste, viste, se não viste, azar… – e dos critérios de exibição das TVs. Havia tanta coisa que se queria rever ou se havia perdido aquando da sua estreia e agora estava domesticamente ao alcance do comum dos mortais.
Sucedeu então que “Aconteceu no Oeste” voltou à baila. Como enfiar aquele Rossio visual na Betesga do televisor? Assim se fez uso de uma técnica apelidada de “pan e scan” que basicamente rodava o olhar, como um movimento de câmara, dentro do que fora um enquadramento original imóvel. Isto era grande aleivosia, pois alterava a forma, a linguagem e, a limite, a tensão dramática das cenas. Famosa ficou uma exibição televisiva de “Aconteceu no Oeste” que não lhe tendo sido aplicado este método de abastardamento visual, na cena do duelo só se via, se tanto, a ponta do nariz dos actores, com a imagem centrada no cenário que Leone pusera ao meio entre eles. Ou seja, não se via nada do que se passava.
Tornando-se o vídeo e a expansão da televisão essenciais à carreira dos filmes, cuja esperança de vida comercial praticamente triplicou, bem depressa produtores e cineastas perceberam a conveniência de enquadrar as imagens ao centro. Por mais independente, artístico ou de autor que seja a fita, é no miolo da imagem que nela tudo acontece. Não há nada de novo nesta conformação da forma, ou seja, da “arte”, à difusão, quer dizer, às “conveniências” – já McLuhan havia ajuizado que “o meio é a mensagem” sem que alguma vez fosse desmentido.
E dos finais da década de 80 em diante assim ficaram as coisas que a Netflix veio agora bulir.
Anunciar “Roma” com as parangonas que aos filmes pertencem por direito adquirido e neste caso com Leão de Ouro em Veneza e tudo, e estreá-lo na internet, é desfaçatez tão grande e ousada como apontar uma pistola à cabeça da indústria de distribuição cinematográfica. É todo uma fileira industrial que está posta em causa, cidadela incólume desde os anos 50, mesmo com os ferozes assaltos da televisão, contra os quais nunca falhou em dar resposta. Televisão essa que a Netflix já pôs em frangalhos bem à vista de toda a gente e que anda à procura do seu futuro sem saber se o encontra.
Que tenha sido “Roma” a arma de arremesso é coisa de espantar. Porque diabo a Netflix elegeu um filme a preto e branco, passado nos anos 70, no seio de um lar na Cidade do México? Haveria obra menos provável para ir à conquista dos públicos?
Na verdade é um golpe de génio. As salas de cinema oferecem um espetáculo desolador a quem tiver mais do que 16 anos e já não tem paciência para os pulos e correrias dos ridículos heróis da Marvel, sempre vestidos de leggins e a discorrerem inanidades.
Ou seja, hoje as classes médias urbanas só saem de casa para ir jantar fora. Já antes, vai fazer agora 20 anos, um canal como a HBO lhes afagara o córtex e o gosto com uma série improvável e bastante incomum como “os Sopranos.” Ora aí estava algo que um canal aberto não ousaria transmitir e que não se dirige nem aos miúdos nem aos básicos. De modo que a Netflix, há-de ter feito o trabalhinho de casa e posto o marketing a peneirar estudos e estatísticas de modo a concluir que meter dentro de casa filmes diferentes, menos aparvalhados, com algum sentido, talvez devolvesse o interesse pelo cinema de cartaz.
Há ainda um aspecto nada despiciendo a destacar em “Roma.” De um ponto de vista estético é absolutamente televisivo, embora haja quem ache que a textura e os pormenores que enriquecem a imagem sejam mais bem apreciados no grande ecrã. O que a exuberância visual de um filme feito para ver em casa prova é precisamente o contrário: o triunfo do digital – ver um filme em ecrã HD, ali na sala de estar, é quase tão bom como ir a o cinema.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização