As eleições do nosso descontentamento
Em “Aprile”, de Nanni Moretti, o personagem principal encontra-se a fazer um documentário sobre as eleições legislativas italianas ao mesmo tempo que procura lidar com a chegada do primeiro filho. Numa cena famosa, o personagem assiste a um debate televisivo entre as forças políticas candidatas, e passa-se com o candidato do centro-esquerdo, D’Alema, exigindo-lhe que diga, primeiro, algo de esquerda, e perante essa dificuldade, que ao menos diga algo de “cívico”.
Abril já foi, maio já vai a meio. Não sou realizador, apenas cronista – e o meu primeiro filho nasceu há duas semanas, no dia do apagão ibérico. Nestes primeiros dias em casa, carregando-o aos ombros ou nos braços pelas divisões, enquanto assisto às notícias da televisão, tentando ler um livro, ou apenas cantando canções de Bruce Springsteen para embalá-lo, sinto-me como um personagem morettiano. A ansiedade não é a mesma, aleluia – o António Pires é um bom companheiro – mas a situação do país (do mundo?) fazem-me sentir paralelos cómicos com a obra do mestre italiano.
“Já não queremos grandes projetos, queremos apenas que não nos tirem o teto. Já não almejamos muito, porque o mundo lá fora está complicado, e o que é que nós aqui dentro podemos fazer, de tão pequenino que somos? E então votamos apenas no poder, no seu controlo. Queremos apenas governantes que sejam gestores, e não políticos que projetem.”
Tudo aponta para que das eleições legislativas do próximo domingo não resulte um equilíbrio parlamentar suficientemente forte para garantir estabilidade governativa a médio-prazo. Mesmo que uma das duas forças com maior probabilidade de vitória consiga almejar acordos que permitam construir coligações com alguma margem, é difícil ficar entusiasmado com as perspetivas, tal a falta de ideias e de visão para o país que por ali anda. Os principais partidos políticos estão, tal como no ano passado, muito presos ao tacticismo e ao curto-prazo, esquecendo a realidade global em que nos inserimos, concentrados em fazer e dizer tudo e o seu contrário para chegar à meta com o melhor resultado possível, para depois fazerem o que se puder, ou seja, o que os permita manterem-se no cargo.
“Parece que estamos, enquanto cidadãos, a desistir aos poucos desta aventura, quando deveríamos era estar cada vez mais ativos em procurar vivê-la da melhor forma. Já não elegemos para ficarmos melhor, mas apenas para que as coisas não mudem assim tanto.”
Não seriam estas as eleições mais propícias ao surgimento de projetos de reforma, dado o enquadramento em que surgiram. Ainda assim, a desilusão e o descontentamento não podiam ser maiores. Parece que estamos, enquanto cidadãos, a desistir aos poucos desta aventura, quando deveríamos era estar cada vez mais ativos em procurar vivê-la da melhor forma. Já não elegemos para ficarmos melhor, mas apenas para que as coisas não mudem assim tanto. Já não queremos grandes projetos, queremos apenas que não nos tirem o teto. Já não almejamos muito, porque o mundo lá fora está complicado, e o que é que nós aqui dentro podemos fazer, de tão pequenino que somos? E então votamos apenas no poder, no seu controlo. Queremos apenas governantes que sejam gestores, e não políticos que projetem. Queremos apenas que as quintinhas recebam o que têm a receber, independentemente das outras quintinhas e das suas preocupações. Não interessa muito se é esquerda, ou direita – e, provavelmente, já começa a interessar pouco que seja cívico (o que quer que esse palavrão queira dizer). O que interessa é que o poder faça, fazendo o que fizer, e que no final eu ganhe qualquer coisa, mesmo que seja pouco. O que, permitam-me que vos diga, é em si mesmo muito pouco.
O cidadão António Pires dorme enquanto escrevo estas palavras. Nasceu num dia sem luz, e já assistiu a uma campanha eleitoral, a um conclave, a uma guerra comercial, e a um derby de alta tensão. No domingo viverá as suas primeiras eleições com a paz de não perceber o que se está a passar, apenas aproveitando o embalo no carrinho em que os pais o vão levar até à mesa de voto. Talvez seja melhor assim. Espero que não tenha de assistir a eleições todos os anos e que possa viver em tempos de desenvolvimento, de estabilidade, e de paz. Espero, claro, que se politize, ou seja: espero que seja cívico, e que perceba que é importante defender o que se acha e lutar por isso. Estas eleições são apenas um exercício de manutenção do sistema (necessário, claro), e independentemente dos resultados espero que possamos tirar lições para o futuro: exigir mais e melhor dos que nos representam, que é tão só e apenas exigir mais e melhor de nós, e dos nossos desejos. Faço figas, pelo António e por nós.
Sugestões do cronista:
Não gostei muito do novo disco dos Arcade Fire e acho que os canais informativos exageram no número de comentadores contratados para comentar qualquer tipo de assunto. Tenho ouvido muito o álbum “Luminiscent Creatures de Ichiko Aoba” e lido o livro “Between Meals: An Appetite For Paris”, de AJ Liebling. A paternidade é, a par do meu casamento, a coisa mais bonita que alguma vez me aconteceu, e espero um dia poder ter palavras para o dizer da forma mais justa que conseguir.

